Neta 129

Anabela Fino

Foi num sábado, a 30 de Abril de 1977. Quando tudo era proibido e o terror reinava, 14 mulheres fizeram da dor coragem e enfrentaram o ditador argentino Videla com uma simples pergunta: onde estão os nossos filhos?

Já sabiam onde não estavam, porque desde aquele fatídico 24 de Março de 1976 em que os militares tomaram o poder e instauraram a ditadura que percorriam sem descanso esquadras de polícia, hospitais, igrejas, repartições públicas, jornais, televisões, qualquer lugar, enfim, susceptível de poder ajudar a fornecer resposta à sua pergunta: onde estão os nossos filhos?

Não tiveram sucesso. O que sabiam é que todos os dias desaparecia mais gente e que as histórias que corriam de boca em boca eram cada vez mais aterradoras. Os presos eram mantidos em centros clandestinos de detenção (CCD) onde eram barbaramente torturados, muitos deles até à morte, e os corpos enterrados em valas comuns ou lançados de avião no Mar da Prata, alguns ainda vivos, em macabros «voos da morte». Dos filhos presos com os pais ou nascidos em cativeiro também nada se sabia, mas falava-se em negócios de adopção.

As mães em busca dos filhos decidiram então enfrentar a Casa Rosada, sede da presidência argentina ocupada pelo ditador sanguinário, juntando-se uma vez por semana na Praça de Maio para fazer publicamente a pergunta de sempre: onde estão?

Chamaram-lhes primeiro as Loucas da Praça de Maio, ridicularizando os lenços brancos que levavam na cabeça, para disfarçar o incómodo que a coragem provoca sempre nos cobardes, nos cúmplices, nos culpados. Mas o número de mães à procura de resposta cresceu na medida da repressão e do terror, e a pergunta de sempre tornou-se um clamor impossível de calar. Onde estão? E assim se tornaram nas Mães da Praça de Maio, conquistando o direito de levar à Justiça os carrascos dos filhos e encontrar o rasto dos netos roubados.

Estima-se que mais de 30 mil pessoas desapareceram durante os sete anos de ditadura e que pelo menos 500 crianças filhas de presos foram sequestradas e adoptadas ilegalmente por outras famílias, algumas ligadas ao regime, outras enviadas para o estrangeiro.

As mães que hoje são as avós da Praça de Maio nunca desistiram de as encontrar. No início deste mês, a organização anunciou a recuperação da neta número 129, filha de uma militante política sequestrada quando se encontrava no oitavo mês de gravidez. A «neta 129», residente em Espanha, descobre aos 44 anos um pai e irmãos que nunca se resignaram a dá-la por perdida.

«Na Argentina, as loucas da Praça de Maio são um exemplo de saúde mental porque se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória», escreveu Eduardo Galeano. 45 anos depois do 25 de Abril, também nós temos o dever de não esquecer o que custou a liberdade.




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