Acordo/Ultimato

Ângelo Alves

Bastaram 38 minutos para que o Conselho Europeu aprovasse o Acordo de saída do Reino Unido da União Europeia e as bases de negociação para o futuro relacionamento.

Na burocracia da União Europeia nada acontece por acaso. A duração da reunião visou sustentar uma das mensagens principais que o Conselho Europeu tentou passar: a inabalável «unidade» dos 27 na «defesa dos interesses da União Europeia». «Unidade» que foi imediatamente transposta para o seu real objectivo: transformar um acordo institucional num ultimato contra o povo britânico. As expressões de «um mau acordo para ambas as partes, mas principalmente para o Reino Unido», de «um dia triste para a Europa», do «acordo possível» mas «o único possível» e, finalmente, de que os britânicos «ou aceitam este acordo ou não há acordo», foram repetidas em coro.

Mais uma vez a máscara democrática e conciliadora da aristocracia da UE caiu. A arrogância com que negociou e aprovou este acordo/ultimato é mais uma cabal demonstração de que o bloco político, económico e militar lida muito mal com as decisões soberanas dos povos.

A estratégia está ainda mais clara: por um lado aprovar um acordo que abrindo a porta da saída, e consumando, no caso de acordo, a saída em Março de 2019, mantém pelo menos até Dezembro de 2020 a Grã Bretanha amarrada a várias das regras da União Europeia (as próprias bases para o relacionamento futuro replicam alguns dos princípios base, políticos e ideológicos da União Europeia). Por outro, aprovar um acordo que na prática deturpa a decisão do povo britânico, um «mau acordo», que cria enormes dificuldades à sua aprovação e aceitação popular.

Ou seja, com este acordo/ultimato, a União Europeia avança com uma dupla estratégia. Ou o Reino Unido aprova este acordo e o período transitório (que pode inclusive vir a ser estendido) e quadro de relacionamento futuro acabam por manter aquele País amarrado em variados aspectos à União Europeia, ou o Reino Unido rejeita o acordo/ultimato e um novo capítulo de chantagem sobre o povo britânico será aberto, abrindo campo para novas tentativas de reversão da sua decisão.

O objectivo político e ideológico é o mesmo que presidiu às chantagens anteriores: criar um quadro que alimente a ideia de que não há alternativa à União Europeia, às suas políticas e aos seus mecanismos de domínio e que qualquer decisão de desvinculação é insustentável.

Mas há alternativa. Insustentável é o processo de integração capitalista. Navegando de crise em crise a União Europeia aprofunda todos os seus pilares neoliberal, militarista e federalista. Veja-se a discussão em torno do exército europeu; a deriva securitária; a crescente ingerência política; o discurso da «soberania europeia» de Macron; o processo do orçamento italiano; a tentativa de transpor para legislação europeia o famigerado «tratado orçamental» ou a insistência no aprofundamento da União Económica e Monetária.

O processo da saída britânica é complexo, e os interesses de classe da UE e do Governo de May (coincidentes) afastaram-no dos reais interesses do povo britânico. Mas como afirmam os comunistas e outras forças progressistas britânicas, uma saída progressista é possível, e isso depende acima de tudo dos trabalhadores e do povo daquele país e da sua luta.




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