A música dos dias em que o futuro nasceu
Quando as primeiras notas da Carvalhesa soaram nas colunas de som do Palco 25 de Abril, a orquestra e o coro estavam já instalados e prontos a iniciar o Concerto «100 Anos de Futuro». A praça foi então tomada pela dança colectiva que sempre acompanha o toque da velha moda transmontana. Por breves instantes a Sinfonietta de Lisboa e o Coro Lisboa Cantat foram o público, e o público o protagonista.
Calado o brado das muitas vozes, acendidas as luzes sobre o palco, instalado o silêncio na praça, por sobre o sussurro da Festa, as madeiras abriram caminho às vozes da primeira das Danças Polovtsianas de Borodine, no primeiro dos maravilhamentos do Concerto. Portuguesas as vozes mas russo o cantar, Alexander Borodine moldando a música do seu povo. Era o surgimento de uma nova Rússia, a vida colectiva construída a partir da imagem sonora popular, um traço mais na criação da consciência revolucionária que viria a dar origem à Revolução de Outubro. Vibrante a orquestra, as Danças foram fixando no relvado, ainda pouco pisado, quem passava pela avenida que circunda a praça.
Baba Yaga (a Bruxa Má dos Russos) sobrevoou a Atalaia com a sua vassoura de violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, arrastando na revoada os restantes naipes da orquestra, envolvendo o público numa trepidação ora das cordas ora dos sopros, as percussões rasgando o ar até desaguar, adiante, na solenidade grandiosa de A Grande Porta de Kiev, pintada a metais por Maurice Ravel a partir de Quadros de Uma Exposição, a obra para piano de Modest Mussorgsky.
Há ainda quem se surpreenda com aquela música de muitas cores, normalmente arredada dos percursos do chamado cidadão comum. O Palco 25 de Abril cumpre o seu papel revolucionário de interpelador.
A segunda das obras apresentadas, a Dança Infernal do Rei Katchei, do bailado Pássaro de Fogo de Igor Stravinsky, emociona o auditório. Mesmo quem desconhecesse o desafio de Ivan a Katchei, por amor de uma princesa, e a resposta violenta do imortal tirano, há-de ter percebido que aquela dança infernal tinha, naquele lugar, o significado de uma metáfora. Texturas musicais como passos decididos de soldados, marinheiros e operários – os Pássaros de Fogo que venceram a imortalidade da águia dos Romanov e devolveram a festa ao terreiro dos mortais.
Outras luzes se acenderiam, a seguir, nos ecrãs do Palco 25 de Abril. As dos «bonecos de luz», que Romeu Correia dizia serem as do cinema. Vai ser projectado o filme Outubro — Os 10 Dias que Abalaram o Mundo (1928), de Sergei Eisenstein. Cândido Mota anuncia Mário Laginha, que toma o seu lugar no piano. No piano não – no ar de Petrogrado, porque as imagens vão mostrar as ruas, os edifícios, os próprios protagonistas da Revolução de Outubro, captados pela câmara de Eisenstein. Laginha será brilhante no retrato sonoro daqueles dias, a trama musical fundida na trama cinematográfica.
Dimitri Shostakovitch regressou à Festa, desta vez para assinalar a Revolução que tão bem descreveu. A Abertura Festiva op. 96, abriria de novo caminho às muitas sonoridades da Sinfonietta de Lisboa. Cinzento, o início do Poema Sinfónico op. 131, revelou a cor dos meses que antecederam a Revolução, a de uma Rússia entre o mando de Nicolai e o mando de Kerenski; o público acompanha com atenção o movimento da partitura (da História), entusiasma-se com a luz que agora soa nos violinos, depois nas percussões, mais adiante nos metais. Agora toda a orquestra é vivacidade revolucionária, e há gente a chegar ao recinto a tempo da próxima obra: de Dmitri Shostakovich, dois andamentos da Sinfonia n.º 12, O Ano de 1917 — À Memória de Lenin. Em Aurora ouve-se os primeiros momentos da Revolução, entre o sussurro da tripulação insurrecta e o troar dos canhões, a bordo do cruzador de onde foi disparado o sinal inicial, texturas e ribombares que são os sons da Revolução a caminho da Praça do Palácio. No último acorde do 4.º andamento é já do Alvor da Humanidade que a orquestra fala, do tal futuro que é tema do Concerto e propósito do público que se levanta em aplausos.
Mário Laginha regressaria ainda, para a leitura pianística de O Homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov. Nem só um filme nem só uma obra pianística, antes um duo de escultores – um da luz, outro dos sons.
O último andamento do Concerto seria já o da festa total: Kalinka, Os Barqueiros do Volga, Partizans, Puts e Katiucha, a viagem temporal entre a Rússia feudal e a URSS socialista. Os camponeses pobres, os barqueiros famintos, mas também os sovietes de operários – de Ivanova a Petrogrado –, os decretos da Terra e da Paz, a electrificação, a bandeira vermelha no telhado do Reichtag, os anos do poder soviético.