Os vestígios do colonialismo
Dias após o regresso a Portugal dos últimos soldados do exército colonial na Guiné, em Setembro de 1974, os principais dirigentes do PAIGC preparavam-se para entrar em Bissau e festejar a vitória da luta de libertação nacional.
Na capital guineense foi organizado um comício defronte do Palácio do Governo, na então Praça do Império, mas à última hora surgiu um problema logístico. No centro da praça, imponente, erguia-se o monumento «Ao esforço da raça», afrontoso, que era indispensável derrubar. Nas semanas anteriores, aliás, grupos de jovens, com o entusiasmo da época, já tinham apeado e destruído parcialmente estátuas do tempo colonial – de Nuno Tristão, o navegador «descobridor» da Guiné, de Teixeira Pinto, o cruel chefe militar «pacificador» do território, de Honório Barreto, um guineense ilustrado que foi governador da colónia em meados do século XIX.
Na Praça do Império, pois, militantes independentistas e trabalhadores camarários, auxiliados por populares, trataram de derrubar o alto pilar em pedra maciça, ali implantado desde o início dos anos 40 em louvor da ditadura salazarista. Tudo se fez: puxou-se com cordas e cabos, empurrou-se com tractores, pensou-se utilizar explosivos. Em vão: o monumento, bem alicerçado, permaneceu inamovível, desafiando os novos tempos.
A poucas horas do comício, surgiu uma solução original: o monumento foi revestido de folhas de palmeira, colocou-se no cimo uma estrela negra, símbolo do partido de Amílcar Cabral, e, assim, a celebração do triunfo decorreu sem problemas. Mais tarde, os governantes da Guiné-Bissau decidiram manter o monumento, rebaptizado «Aos Heróis Nacionais». Ainda lá permanece, na Praça dos Heróis Nacionais, no coração de Bissau.
Contra a dominação,
opressão e exploração
Esta questão do que fazer dos símbolos do colonialismo europeu em África – destruí-los ou exibi-los – tem sido recorrente nos países do continente, independentes há décadas.
O jornalista franco-senegalês Mehdi Ba publicou um artigo na revista Jeune Afrique lembrando que ruas e monumentos «continuam a homenagear os antigos opressores», tanto em capitais africanas como em antigas metrópoles coloniais.
Há meses, conta ele, um activista, Andre Blaise Essama, foi condenado pela Justiça dos Camarões a seis meses de prisão e a uma multa pecuniária, culpado de «destruição de bem público».
Acusado de ser um «desequilibrado» pela polícia e um «vândalo» pela Justiça, o réu, que se considera um patriota, cometeu o «crime» de desaparafusar e decapitar a estátua de um certo general Leclerc de Hauteclocque, levantada na Praça do Governo, em Douala. Essama justificou o gesto como «uma homenagem aos mártires camaroneses injustamente enforcados» pela França colonial. E confessou que tinha também destruído 50 placas sinaléticas em ruas com nomes franceses.
Na África do Sul, em 2015, mais de 20 anos depois da queda do apartheid, manifestações estudantis forçaram a retirada, pelas autoridades, de uma estátua de Cecil Rhodes à entrada da Universidade do Cabo.
O caso esteve envolvido em polémica. Figura destacada do imperialismo britânico na África Austral, Rhodes foi fundador da companhia diamantífera De Beers, primeiro-ministro da colónia do Cabo entre 1890 e 1896, inspirador da Rodésia segregacionista e, sobretudo, um dos artesãos do racismo na região.
Na altura, no país do arco-íris, vozes mais radicais exigiram a supressão de todas as marcas do colonialismo e do apartheid mas o presidente sul-africano, Jacob Zuma, adoptou uma posição mais moderada: «Quando se lê um livro de História, não se arrancam as páginas dolorosas. (…) A História deve ser ensinada com os seus aspectos dolorosos e devastadores. O que nós devemos discutir é o lugar desses monumentos coloniais e do apartheid. A cólera não constrói uma nação, ela destrói-a».
O que importa evidenciar é que os povos da África, com as independências, não só derrubaram estátuas ou mudaram nomes de ruas, cidades e até de países. Vão também redescobrindo o seu passado, escrevendo a sua História, ao mesmo tempo que retomam nas suas próprias mãos a edificação de um futuro de paz, desenvolvimento e progresso a que têm direito.
Num tempo em que, no quadro do agravamento da crise do capitalismo, recrudescem os perigos do fascismo e da guerra, é importante que, no processo de escrita da História, se combata a manipulação e o silenciamento do que foi o colonialismo e os seus horrores, se denuncie a desumanidade de qualquer forma de dominação, opressão e exploração. Em África e em todo o Mundo.