Uma realidade

Henrique Custódio

Num acossamento, a direita reunida no PSD e no CDS barafusta do canto onde se acantonou e denuncia-se, enquanto fala, como descontrolada perdedora.

Visivelmente abalada nos fundamentos do seu poder – o rotativismo do «arco da governação», que os perpetuava no comando do País –, as hostes da direita começaram por classificar as negociações parlamentares à esquerda como «golpe de Estado» (raciocínio supletivo de Manuela Ferreira Leite, a expor o estado de choque da ranchada), a que se seguiu um mês inteiro de despautérios de igual extração («golpada», «manobra ignóbil», «atentado», «ilegitimidade» e etc.).

Seguiu-se o desconchavo no início da legislatura na Assembleia da República, onde PSD e CDS chegaram a chamar a António Costa «primeiro-ministro não-eleito» ou «primeiro-ministro, vírgula, não eleito», estultícia que, a ser lavada a sério, conduziria os seus autores a, de imediato, se demitirem da Assembleia da República, órgão de que ignoram ou desprezam, ao nível mais elementar, o funcionamento, competências e atribuições constitucionais, nomeadamente a de que a Assembleia da República é que determina a viabilidade ou não do governo através da apreciação do respectivo programa, que caso seja rejeitado implica a queda do governo.

Para completar o entremez, o Presidente da República manifestou-se (de novo) um acirrado paladino do governo PSD/CDS, convocando-o para formar governo quando já sabia, de ciência certa (todas as direcções dos partidos à esquerda do PS lhe confirmaram o apoio a um Executivo PS), que tal governo seria chumbado na AR (como foi) e teimando até ao intolerável em adiar a tomada de posse do Governo do PS, fazendo-o, finalmente, com o seu papel presidencial de independência irremediavelmente comprometido.

Seguiu-se a ferocidade cega da direita «a comprometer-se» a nada aprovar na Assembleia da República, remetendo-se ela própria a um gueto raivoso, ressabiado, bota-abaixista e completamente inoperante.

A generalidade dos comentadores começou a alinhar na tese de que tal procedimento só podia explicar-se pela ânsia de provocar eleições rapidamente, na táctica (aliás, conhecida e praticada na União Europeia) de repetir actos eleitorais até que os resultados convenham a quem os propõe.

De concreto, o que se pode inferir deste procedimento da direita é que ainda não conseguiu (ou não conseguiram, dada a existência de duas formações) digerir a derrota eleitoral e, sequer, aceitar os resultados e as consequências de terem perdido a maioria parlamentar.

Certo, também, é que algo de novo se passa no nosso País. Uma realidade que redefiniu o exercício do poder, uma realidade que alargou a todo o espectro partidário com assento na Assembleia da República a definição do governo do País.

Uma realidade irrecusável, que vai moldar o futuro.

 



Mais artigos de: Opinião

Cretinismo reaccionário

Vasco Pulido Valente é o nome artístico de Correia Guedes, escrevinhador do «Público», ex-secretário de Estado de Sá Carneiro, ex-apoiante de Mário Soares e ex-deputado do PSD que se demitiu «desiludido» com a «actividade parlamentar», e cujos...

Almofadinhas

Perante a constatação insofismável de que os «cofres cheios» afinal foram praticamente esvaziados nos últimos meses da governação PSD/CDS, e de que a tão badalada «almofada» que havia de amparar as contas públicas em caso de necessidade...

10 de Dezembro de 1976

Há 39 anos exactos, neste dia 10 de Dezembro, a Assembleia Geral da ONU aprovou o texto-base da Convenção sobre Modificações Ambientais (Environmental Modification Convention – ENMOD), proibindo a utilização militar ou qualquer outra utilização hostil...

Aspectos da luta de classes

No quadro da sanha anticomunista que por estes dias fez sair das moitas onde estavam acocorados muitos «democratas» encartados, houve os que, assumindo o seu papel de sempre de defesa dos interesses de classe que representam, fizeram agora às claras o que andam a fazer há décadas num estilo mais polido de meias palavras e subentendidos.

A vigésima eleição

A direita comemora o triunfo nas eleições legislativas de 6 de Dezembro na Venezuela. O Presidente Maduro e o Grande Pólo Patriótico (GPP) reconheceram de pronto o resultado anunciado pela autoridade eleitoral, saudando a vigência da Constituição bolivariana de 1999. Coisa...