Comentário

«Auxílio» disse ela

João Ferreira

1. Salvo disposição em contrário dos Tratados, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções. (…)

3. Podem ser considerados compatíveis com o mercado interno:

a) Os auxílios destinados a promover o desenvolvimento económico de regiões em que o nível de vida seja anormalmente baixo ou em que exista grave situação de subemprego (…);

c) Os auxílios destinados a facilitar o desenvolvimento de certas actividades ou regiões económicas, quando não alterem as condições das trocas comerciais de maneira que contrariem o interesse comum».

Tratado de Funcionamento da União Europeia

 

Culminando uma investigação iniciada há 28 meses, a Comissão Europeia veio afirmar que «o apoio público de cerca de 290 milhões de euros, concedido por Portugal aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, S.A. (ENVC), (…) não era compatível com as regras da UE em matéria de auxílios estatais». Assim sendo, esta verba terá de ser devolvida, cabendo o reembolso aos ENVC e não ao novo operador dos estaleiros, a WestSea (do grupo Martifer).

O governo português rejubila, vendo aqui a oportunidade para espetar o que julga ser um último prego no caixão dos ENVC.

Com esta decisão vira-se mais uma página (que não a última) de uma longa história. A história de um crime contra uma empresa e um sector produtivo estratégicos; contra a região do Alto Minho, onde a empresa se insere e onde deu emprego a milhares de trabalhadores; um crime contra o País que dispõe da maior Zona Económica Exclusiva de toda a UE, mas no qual foram destruídos praticamente todos os grandes estaleiros de construção naval. Um crime de autoria conhecida – PS, PSD, CDS, apoiados na UE, por tudo o que fizeram e por aquilo que não fizeram, conduziram premeditadamente os Estaleiros de Viana a este ponto.

Ao virar desta página, alguns breves comentários se impõem. Como notas de pé de página, de apoio a uma luta que continuará muito para além desta decisão.

As restrições à intervenção dos estados na economia, plasmadas nos tratados, são reveladoras da natureza de classe da União Europeia. Os ditos «auxílios estatais» são um instrumento essencial, em especial nos países com maiores fragilidades, para dinamizar o desenvolvimento económico e social, promover a coesão regional, permitir ao Estado concretizar as suas opções estratégicas. Limitar a soberania e a capacidade de intervenção dos estados neste domínio, em nome de uma sacrossanta «livre concorrência» que apenas aproveita aos grandes grupos económicos das principais potências, para além de uma intolerável ingerência, significa amputar a democracia, deformá-la e conformá-la aos interesses de classe de uma minoria, contra os interesses da maioria – ou seja, é na prática negar a própria democracia. Eis o papel e os objectivos da proclamada «construção europeia». A mesma que, proibindo ou limitando apoios dados a empresas públicas, permite a fuga legal ao fisco por parte das multinacionais.

Mas se a matriz do processo de integração capitalista é o que é (e não pode ser alterada), já a sua aplicação prática não é indiferente às múltiplas contradições que atravessam esse processo. As próprias disposições dos tratados (acima transcritas) instituem um princípio (indiscutivelmente negativo) mas tratam de não o absolutizar. Assim o impuseram ao longo dos anos, e continuam a impor, os interesses de grupos económicos de alguns países. Pelo que a regra não vem sem excepção. As excepções foram sendo várias ao longo dos tempos.

O sector da construção naval dispõe de enquadramento específico para regulamentar os «auxílios de Estado». Ao longo dos anos chegaram inclusivamente a vigorar períodos excepcionais em que esses auxílios foram permitidos quase sem restrições. Vários países aproveitaram esses períodos para financiar as suas empresas, sem qualquer impedimento da UE. Em Portugal, os governos PSD/CDS e PS desaproveitaram essa oportunidade.

Mas mesmo hoje continuam a existir financiamentos públicos à indústria da construção naval. Sob várias formas. Uns enquadrados na legislação existente (que os limita mas permite), outros nem tanto.

Todavia, esta não é, nunca foi, a questão essencial. Existem fundamentos para que o Estado português conteste e rejeite a decisão da Comissão Europeia. Mas não o podemos esperar de um Governo que não quer senão justificar deliberadas opções de destruição do aparelho produtivo nacional e do sector público empresarial.




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