Estados Unidos da Desigualdade

António Santos

Uma vez o bi­li­o­nário Warren Buffet va­ti­cinou o que po­deria ter sido o epi­táfio do fim do sé­culo pas­sado: «se a luta de classes exis­tisse mesmo, a minha classe ga­nhou». A marcha triunfal do ca­pi­ta­lismo mo­no­po­lista ame­ri­cano veio pôr fim, há cin­quenta anos, a um mo­mento his­tó­rico em que a alta bur­guesia norte-ame­ri­cana foi obri­gada a re­cuos tác­ticos, cor­po­ri­zados pela «Guerra à Po­breza» do Pre­si­dente Lyndon B. Johnson. Sob a pressão in­terna da luta dos tra­ba­lha­dores es­tado-uni­denses e obri­gado ex­ter­na­mente a tentar com­petir com o campo so­ci­a­lista em di­reitos dos tra­ba­lha­dores, o grande ca­pital foi for­çado a con­ces­sões como os di­reitos civis dos afro-ame­ri­canos e a to­le­rância re­la­tiva da ac­ti­vi­dade sin­dical. No en­tanto, desde o final dos anos ses­senta que o pro­cesso de re­es­tru­tu­ração do ca­pi­ta­lismo mo­no­po­lista, a ra­di­ca­li­zação do im­pe­ri­a­lismo e uma po­de­rosa ofen­siva po­lí­tica ne­o­li­beral têm le­vado à des­truição sis­te­má­tica das con­quistas da classe ope­rária. Os re­sul­tados têm sido trá­gicos para o mundo, mas também para os EUA, onde o fosso de de­si­gual­dade que se­para po­bres e ricos volta a as­sumir a pro­fun­di­dade de uma vala comum.

Se­gundo um es­tudo da Pew Re­se­arch agora di­vul­gado, os EUA atin­giram o maior nível de de­si­gual­dade desde 1928, com os pa­trões a ob­terem ren­di­mentos 273 vezes su­pe­ri­ores à média dos tra­ba­lha­dores, e os ren­di­mentos dos de­ten­tores dos meios de pro­dução a cres­cerem mais de 10% por ano contra menos de 0.3% para os tra­ba­lha­dores. Se em 1982, os 1% mais ricos de­ti­nham cerca de 11% da ri­queza en­quanto que os 90% mais po­bres de­ti­nham 65%, ac­tu­al­mente, 1% dos es­tado-uni­denses con­trolam 23% da ri­queza, e a 90% da po­pu­lação cabe menos de 50% da mesma. Es­ta­tís­ticas da Oxfam es­miúçam me­lhor a mons­tru­o­si­dade destes nú­meros: os 30 ho­mens mais ricos dos EUA são tão ricos como 150 mi­lhões de ame­ri­canos, me­tade da po­pu­lação.

Se­gundo outro es­tudo do Ins­ti­tute for Po­licy Stu­dies, a de­si­gual­dade mantém o seu ca­rácter ra­cista: a po­pu­lação afro-ame­ri­cana cor­res­ponde hoje a 13% da po­pu­lação mas con­tinua a deter um mí­seros 2.7% da ri­queza total. De acordo com ou­tras es­ta­tís­ticas di­vul­gadas em Ja­neiro pelo Na­ti­onal Center for Edu­ca­tion Sta­tis­tics, entre 2001 e 2011 a de­si­gual­dade atingiu as cri­anças com es­pe­cial gra­vi­dade, mer­gu­lhando na po­breza me­tade de todos os alunos ame­ri­canos em es­colas pú­blicas. Já o Pu­blic In­te­rest Re­se­arch Group aponta entre as causas da cres­cente de­si­gual­dade a trans­fe­rência para os bolsos das classes tra­ba­lha­doras da carga fiscal dis­pen­sada ao grande ca­pital: cerca de 90 mil mi­lhões de dó­lares que em­presas como a Pfizer, a Mi­cro­soft ou a Ci­ti­group sim­ples­mente não têm que pagar.

 

Sem fron­teiras

 

As mons­tru­osas de­si­gual­dades so­ciais nos EUA não res­peitam fron­teiras es­ta­duais. Ao longo das úl­timas três dé­cadas, a de­si­gual­dade de ren­di­mentos cresceu em todos os 50 Es­tados: sempre que se re­gistou um cres­ci­mento dos ren­di­mentos, os 1% mais ricos be­ne­fi­ci­aram de me­tade desse cres­ci­mento e os res­tantes 99% dis­tri­buíram entre si a me­tade res­tante. Em quatro es­tados, apenas os 1% mais ricos co­nhe­ceram esse au­mento de ren­di­mentos en­quanto que os res­tantes 99% em­po­bre­ceram. Em 15 ou­tros es­tados, os 1% mais ricos be­ne­fi­ci­aram de 84% do en­ri­que­ci­mento total.

O cres­ci­mento da de­si­gual­dade so­cial nos EUA não é, ao con­trário do que pre­tende Obama que de­dicou ao tema o seu dis­curso do Es­tado da União, a con­sequência de qual­quer falha téc­nica no sis­tema ca­pi­ta­lista nem um pro­blema que possa ser re­sol­vido com boa von­tade e doses ge­ne­rosas de hu­ma­nismo. Nos EUA como em todo o mundo ca­pi­ta­lista, a de­si­gual­dade não é um pro­blema de dis­tri­buição mas a con­sequência de uma forma es­pe­cí­fica de pro­dução, pelo que só pode ser ul­tra­pas­sada por uma força po­lí­tica de classe que iden­ti­fique a pro­pri­e­dade dos meios de pro­dução e a questão do poder como eixos fun­da­men­tais da ac­ti­vi­dade po­lí­tica.

Warren Buffet tinha razão sobre uma coisa: a luta de classes existe mesmo. Mas a sua classe não venceu a luta e a his­tória não acabou, nem po­derá acabar en­quanto a ex­plo­ração seja norma e a in­jus­tiça for regra.



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