O retrato de Kimani Gray

António Santos

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Chamava-se Kimani Gray e tinha dezasseis anos. Na noite de 9 de Março, regressava à sua casa num dos bairros mais pobres de Brooklyn, em Nova Iorque, quando parou para cumprimentar um grupo de amigos. Ao ver um carro desconhecido aproximar-se, Kimani despediu-se do grupo e continuou o seu caminho. Os polícias à paisana que saíram do carro disseram mais tarde que acharam o gesto «suspeito». Então, e sem nunca se identificarem, mandaram-no parar; gritaram-lhe que não se movesse. Mas Kimani picou o passo e os dois agentes dispararam onze balas, trespassando-o de sete.

As incontáveis vigílias, manifestações e confrontos com a polícia que continuam duas semanas depois, põem em evidência a antipatia acumulada entre a população e a polícia. Desde o assassinato de Kimani, já foram detidas mais de 60 pessoas nos protestos e o bairro do jovem foi declarado uma «Zona Congelada», uma espécie de mini lei marcial que só havia sido implementada uma vez desde o 11 de Setembro.

Entretanto, começou uma luta pelo retrato de Kimani Gray. Michael Bloomberg, multibilionário e chefe do governo de Nova Iorque, tem-se ocupado a demonizar o jovem assassinado, acusando-o de estar armado, de já ter sido detido e de pertencer a um gangue. Ao mesmo tempo, família, amigos, colegas, professores e mesmo o director da escola em que estudava, pintam uma imagem muito diferente.

Mas não importa que a única testemunha diga que Kimani não estava armado, não importa que tenha ou não tenha cadastro. Kimani não precisa de demonstrar inocência porque nunca foi declarado culpado. Como Ramarley Graham, Trayvon Martin, Keyka Boyd, Sean Bell e tantos outros, Kimani não morreu pelo que fez mas sim pelo que era: jovem, negro e pobre (estava entre os 17 milhões de crianças americanas na pobreza). O seu assassinato não é um mero caso de polícia, é o corolário pretendido de um programa de criminalização da comunidade afro-americana. Um sistema que só pode ser compreendido na senda da tradição racista que remonta aos tempos da escravatura, do KKK e da segregação.

Stop and Frisk

Para conter a emancipação social dos afro-americanos, o grande capital norte-americano nunca hesitou em recorrer às tácticas mais brutais. Da mesma forma que nos anos sessenta e setenta introduziram o crack no Partido Pantera Negra, hoje promovem a negatividade, a fraqueza e a destruição da auto-estima dos jovens afro-americanos. Programas como o nova-iorquino Stop and Frisk (qualquer coisa como «parar e revistar») criam as condições psicológicas e políticas para que uma criança desarmada possa ser assassinada e só depois se pergunte porquê.

Com efeito, Kimani foi morto no decorrer de uma operação de Stop and Frisk. Só entre 2011 e 2012, mais de um milhão e 200 mil pessoas foram paradas e revistadas pela polícia de Nova Iorque por serem consideradas «suspeitas». E embora menos de 10% destas operações tenha resultado em qualquer acusação, 87% de todos os «suspeitos» eram (suspeitosamente) negros ou hispânicos.

O Stop and Frisk é a justificação implícita do assassinato de adolescentes como Kimani e a normalização da brutalidade policial. Mas as constantes operações que aterrorizam e humilham as comunidades imigrantes e afro-americanas são também uma espécie de seguro do sistema prisional.

Como há cento e cinquenta anos, as classes dominantes norte-americanas dependem economicamente do racismo e da canalização dos negros da escola para a prisão. Os EUA têm a maior população prisional do mundo, compondo menos de 5% da humanidade e mais de 25% da humanidade presa. O que significa que em cada 100 americanos um está preso. A subir em flecha desde os anos oitenta, a surreal taxa de encarceramento dos EUA é também um negócio e um instrumento de controlo social: à medida que o negócio das prisões privadas alastra, uma nova categoria de milionários consolida o seu poder político. Os donos destes cárceres são na prática donos de escravos, que trabalham em fábricas no interior da prisão por salários inferiores a 50 cêntimos por hora. O trabalho escravo é tão competitivo, que se aprova leis que vulgarizam as sentenças de até 15 anos de prisão por crimes menores como roubar pastilha elástica. O alvo destas leis draconianas são sobretudo os negros que, representando apenas 13% da população americana, compõem 40% da população prisional.

Quem matou Kimani foi este sistema racista e profundamente injusto. Para compreender porquê, devemos questionar e revolver a biografia do assassino, não a da vítima.



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