A vida está a tornar-se num calvário
O primeiro-ministro não gosta que se fale da vida dura e amarga que atinge um número crescente de portugueses. Acha que é falta de imaginação. Foi o que disse quando interpelado pelo Secretário-geral do PCP a pronunciar-se sobre os problemas e dificuldades com que se confrontam as pessoas e o País.
Desemprego bate novo recorde
Por muito que isso lhe custe, «quer queira quer não», de uma coisa ficou Passos Coelho a saber: o PCP, pela sua parte, nunca deixará de falar dos problemas, nem de os levar ao Parlamento. Pela razão simples de que «são os problemas dos portugueses e de Portugal», afiançou Jerónimo de Sousa.
Tudo se passou sexta-feira passada, no debate quinzenal, onde uma vez mais coube à bancada comunista trazer para o centro do debate aspectos fulcrais da realidade do País, muito em particular os que se prendem com a vida das pessoas.
E começou precisamente por assinalar – para manifesto desagrado do chefe do Governo – que à medida que o tempo passa, a cada debate quinzenal, a vida está a dar razão ao PCP, à sua análise e aos seus alertas quanto às consequências para o País do que denomina, justamente, por «pacto de agressão ao povo e a Portugal».
Desemprego recorde
Lembrou, nomeadamente, os mais recentes indicadores que mostram que o País atingiu novo recorde de desemprego, com mais uns milhares «empurrados para a vida precária, muitos para a miséria e para a pobreza».
«A vida está a tornar-se um calvário para as populações», sublinhou, dando como exemplo «os aumentos brutais dos transportes, da saúde, da energia, de tudo o que é essencial à vida», isto em cima «da redução dos salários e pensões».
«Os nossos idosos morrem cada vez mais sozinhos e doentes», prosseguiu o líder comunista, não escondendo a sua indignação face ao rolar dos acontecimentos, designadamente quanto ao facto de estar a ser «construída uma sociedade que se descarta de tudo o que não seja lucro e que não seja negócio».
Uma sociedade, observou, onde há quem trabalhe e chegue ao fim do mês e não receba o seu salário, onde são muitos os que não têm condições para deixar o seu filho numa creche, onde muitos outros ainda «começam a ter de escolher entre comer ou comprar um medicamento ou deixar-se morrer porque não têm condições para pagar o transporte para um hospital», como recentemente aconteceu com os casos vindos a público de doentes oncológicos.
«Não é retórica; estamos a falar da vida das pessoas, da realidade que não pode ser escondida com o matraquear da ideologia das inevitabilidades» enfatizou Jerónimo de Sousa, convicto de que desta política de terra queimada não advirão boas novas para o futuro.
E por isso a pergunta: «É com tudo isto que estamos a assistir que vai ser resolvido algum problema nacional, algum problema estruturante, do défice, da dívida, do emprego?»
Antes de lhe passar a palavra, o líder comunista lançou ainda um repto a Passos Coelho: «Diga, senhor primeiro-ministro. Deixe-se de discursos de retórica, do amanhã que nunca chega, falemos da realidade e da perspectiva que temos para diante».
Ignorar dramas
«A cada quinze dias destes debates, começa a faltar imaginação para pôr questões», disse Passos Coelho, assim desvalorizando, de forma pouco hábil e cuidadosa (para não dizer desastrosa) as questões colocadas, numa atitude reveladora em si mesmo de uma chocante indiferença perante o sofrimento, os dramas humanos e as chagas sociais abertas pela sua política.
Repetiu, ainda, o óbvio – a visão [do PCP] para o País «não é a nossa» –, e recusou que dos «casos dolorosos para os portugueses» e da situação em que o País mergulhou possa inferir-se a «falência da situação que o Governo defende».
«O Governo está a apresentar resultados e está a defender os portugueses da crise», acrescentou, dando como exemplo o défice estrutural para 2011 que representa um desagravamento de 4, 4 % do PIB relativamente a 2010.
E citou também os dados do desequilíbrio externo, para dizer que «melhoraram», informando, ainda que vagamente, que as necessidades de financiamento externo do País «se estão a reduzir consideravelmente».
Com isto, considerou estar a responder com «factos, não com intenções», antes de insistir na propalada ideia de que o «País está numa situação difícil porque acumulou ao longo de mais de dez anos um desequilíbrio externo extremamente gravoso, que empobreceu o País, que viveu do que não tinha».
Factos incómodos
Na réplica, aludindo à alegada falta de imaginação de que fora acusado, Jerónimo de Sousa fez notar que se limitara apenas a trazer para o debate a realidade concreta do País. «Falar da vida das pessoas, dos seus problemas, anseios, dificuldades, desse País real que o senhor nega», disparou.
E acusou Passos Coelho de, em vez de «factos», falar de «números». Porque, explicou – este é que é o facto indesmentível – «não foi resolvido nenhum problema estrutural da sociedade portuguesa». A demonstrá-lo, preto no branco, aí está, exemplificou, «o acentuar das clivagens, o aumento da pobreza, do desemprego, da recessão, a não criação de mais riqueza».
«Esta é que é a realidade incontornável, senhor primeiro-ministro», afirmou o líder do PCP, antes de deixar um reparo final: «E não venha cá dizer que é falta de imaginação. Estamos aqui para quê? Para discutir o quê? O sexo dos anjos? Não! Estamos aqui para discutir os problemas das pessoas, dos portugueses. É isso que estamos aqui a fazer.»
Sacrifícios sempre para os mesmos
Perante a afirmação do primeiro-ministro de que o pacto de agressão «será cumprido custe o que custar», Jerónimo de Sousa quis saber o exacto alcance de tais palavras. «Vai custar a quem? Está a pensar acrescentar sacrifício aos sacrifícios que o nosso povo está a fazer ou está a pensar naqueles que pagam pouco ou não pagam nada, num rebate de consciência que nem este nem o governo anterior tiveram?», inquiriu.
E lembrou que estudos da própria União Europeia comprovam que a austeridade recai sobre os que menos têm e menos podem, sendo estes, fundamentalmente, quem está a fazer os sacrifícios.
Por outro lado, Jerónimo de Sousa não deixou passar em claro o facto de a intervenção do primeiro-ministro ter sido omissa relativamente àqueles que «tiveram a principal responsabilidade pela situação que vivemos».
E salientou, a propósito, que foi o «capital financeiro, o sistema financeiro que levou a que ainda hoje o País esteja a pagar por esses negócios escandalosos, esses buracos monstruosos», como foi o caso BPN. Os mesmos a quem, «ainda por cima», observou, o Governo disponibiliza 12 mil milhões para resolver os seus problemas».
«Está a pensar em quem, senhor primeiro-ministro, quando diz “custe o que custar”, que o povo português vai ter de comer o pão que as troikas amassaram», insistiu, exigindo esse esclarecimento, porquanto, sublinhou, «obrigar os mesmos de sempre a pagar não resolve o problema, aumenta as injustiças».
Passos Coelho, na resposta, voltou a repetir frases batidas como a de que o «Governo está a cumprir exactamente aquilo que é suposto um governo e um país honrado fazer», tudo em nome de «um acordo que vincula o País a reduzir a nossa dívida, o nosso défice, a realizar reformas estruturais».
De concreto, sobre quem recai o fardo, é que nada adiantou, camuflando convenientemente a questão com tiradas de cordel, do género: «Uma nação que tem amor próprio não anda de mão estendida nem a lamentar-se. Cumpre os seus compromissos e volta a erguer-se. É esse o custo que o País sabe que tem de cumprir para sair da situação em que está. E os portugueses terão muito orgulho em fazê-lo».
«A maior honra que um governo pode ter é governar em conformidade com aquilo que disse em campanha eleitoral», coisa que este não faz, ripostou Jerónimo de Sousa, que deixou uma certeza, dirigindo-se a Passos Coelho: «não vai resolver os problemas nacionais; e será o povo a resolvê-los. Consigo, sem si ou contra si».