José Saramago morreu aos 87 anos

Páginas de uma vida

Nas­cido de fa­mí­lias cam­po­nesas po­bres, na lo­ca­li­dade da Azi­nhaga, con­celho da Go­legã, José Sa­ra­mago fez-se es­critor e chegou a Prémio Nobel da Li­te­ra­tura. Na sua con­duta diária e na sua vasta e rica obra li­te­rária, nunca es­queceu as suas ori­gens nem deixou de se afirmar co­mu­nista.

«Cri­ador dessas per­so­na­gens, mas, ao mesmo tempo, cri­a­tura delas»

José Sa­ra­mago nasceu na Azi­nhaga, na Go­legã, em 16 de No­vembro de 1922. Os seus pais, cam­po­neses sem terra, cha­mavam-se José de Sousa e Maria da Pi­e­dade. Como o pró­prio es­critor es­creveu numa au­to­bi­o­grafia edi­tada no sítio elec­tró­nico da fun­dação que tem o seu nome (www.jo­se­sa­ra­mago.org), «José de Sousa teria sido também o meu nome se o fun­ci­o­nário do Re­gisto Civil, por sua pró­pria ini­ci­a­tiva, não lhe ti­vesse acres­cen­tado a al­cunha por que a fa­mília de meu pai era co­nhe­cida na al­deia: Sa­ra­mago.» Facto cu­rioso é o de só aos sete anos, quando teve de apre­sentar na es­cola pri­mária um do­cu­mento de iden­ti­fi­cação, ter sa­bido que o seu nome com­pleto era José de Sousa Sa­ra­mago.

Aos dois anos vai com a fa­mília para Lisboa em busca de uma vida me­lhor – que tardou em apa­recer: «Já eu tinha 13 ou 14 anos quando pas­sámos, enfim, a viver numa casa (pe­que­nís­sima) só para nós: até aí sempre tí­nhamos ha­bi­tado em partes de casa, com ou­tras fa­mí­lias.» Du­rante este tempo, passou pe­ríodos pro­lon­gados com os avós ma­ternos na al­deia natal.

Na es­cola pri­mária foi bom aluno, tal como no Liceu. Mas a vida di­fícil im­pediu-o de con­ti­nuar os es­tudos. A única al­ter­na­tiva era fre­quentar uma es­cola pro­fis­si­onal e, du­rante cinco anos aprendeu o ofício de ser­ra­lheiro me­câ­nico, que seria a sua pri­meira pro­fissão. Mas nessa es­cola apren­deria mais do que isso, através das dis­ci­plinas de Francês e Li­te­ra­tura que, sur­pre­en­den­te­mente, es­tavam in­cluídas no plano de es­tudos.

Foram os li­vros es­co­lares a des­pertar no então jovem aprendiz de ser­ra­lheiro o gosto pela li­te­ra­tura, de­sen­vol­vido nas noites pas­sadas na bi­bli­o­teca pú­blica de Lisboa. O pri­meiro livro com­prou-o com 19 anos. Da ofi­cina muda-se para um or­ga­nismo de Se­gu­rança So­cial, onde passa a tra­ba­lhar como em­pre­gado ad­mi­nis­tra­tivo.

Os pri­meiros li­vros, o jor­na­lismo e a po­lí­tica

Em 1947, ano em que nasce a sua filha Vi­o­lante, fica mar­cado na vida de José Sa­ra­mago como o ano em que pu­blica o seu pri­meiro livro, Terra do Pe­cado. Como ele pró­prio es­creveu, «du­rante 19 anos, até 1966, quando pu­bli­caria Os Po­emas Pos­sí­veis, es­tive au­sente do mundo li­te­rário por­tu­guês, onde devem ter sido pouquís­simas as pes­soas que deram pela minha falta». Mas esses es­ti­veram longe de ser anos per­didos...

Ainda jovem, José Sa­ra­mago inicia a sua ac­ti­vi­dade an­ti­fas­cista, par­ti­ci­pando em vá­rias ini­ci­a­tivas da re­sis­tência. Nos anos de 1948/​49, é apoi­ante e in­ter­ve­ni­ente ac­tivo na can­di­da­tura de Norton de Matos à Pre­si­dência da Re­pú­blica, o que o le­varia a perder o em­prego no Es­tado. Voltou à me­ta­lurgia, por mão de um amigo.

No final dos anos 50, José Sa­ra­mago passa a tra­ba­lhar numa edi­tora, Es­tú­dios Cor, como res­pon­sável pela pro­dução, ac­ti­vi­dade que, re­co­nheceu, per­mitiu-lhe travar co­nhe­ci­mento com al­guns dos mais im­por­tantes es­cri­tores por­tu­gueses de então. Entre 1967 e 1968 tra­ba­lhou também como crí­tico li­te­rário na Seara Nova.

 Em 1969 adere ao PCP, pas­sando a in­te­grar a Or­ga­ni­zação dos In­te­lec­tuais de Lisboa e, entre esse ano e 1973, de­sen­volve uma in­tensa ac­ti­vi­dade na CDE no de­correr das cam­pa­nhas «elei­to­rais» para a cha­mada As­sem­bleia Na­ci­onal. Em 1970, edita uma nova co­lec­tânea de po­emas, Pro­va­vel­mente Ale­gria.

En­tre­tanto, no final de 1971, José Sa­ra­mago deixou a edi­tora e tra­ba­lhou, du­rante os dois anos se­guintes, no ves­per­tino Diário de Lisboa como co­or­de­nador de um su­ple­mento cul­tural e como edi­to­ri­a­lista. Esses edi­to­riais se­riam pu­bli­cados em 1974, sob o tí­tulo As opi­niões que o DL teve.

Re­vo­lução, contra-re­vo­lução e a es­crita

Com a Re­vo­lução de Abril, José Sa­ra­mago passa a in­te­grar a cé­lula dos Es­cri­tores do Sector In­te­lec­tual de Lisboa do PCP sendo, logo a se­guir, eleito para a di­recção do Sector de Artes e Le­tras, or­ga­nismo en­tre­tanto criado e ao qual se man­teve li­gado du­rante muitos anos, mesmo de­pois de ter pas­sado a de­dicar-se to­tal­mente à es­crita. Du­rante o pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário, par­ti­cipa ac­ti­va­mente nas vá­rias ini­ci­a­tivas pro­mo­vidas pelo Par­tido e pelo mo­vi­mento ope­rário e po­pular. Desde 1976 que passa a par­ti­cipar, jun­ta­mente com ou­tros des­ta­cados in­te­lec­tuais, na cons­trução da Festa do Avante!.

Em Abril de 1975, tornou-se di­rector-ad­junto do Diário de No­tí­cias, cargo que as­sumiu até No­vembro desse ano, al­tura em que foi de­mi­tido na sequência do golpe de 25 de No­vembro. Nesse pe­ríodo di­fícil, a sua ac­ti­vi­dade li­te­rária res­surgiu com re­do­brado fulgor com a pu­bli­cação de O Ano de 1993 e Os Apon­ta­mentos.

«Sem em­prego uma vez mais e, pon­de­radas as cir­cuns­tân­cias da si­tu­ação po­lí­tica que então se vivia, sem a menor pos­si­bi­li­dade de o en­con­trar, tomei a de­cisão de me de­dicar in­tei­ra­mente à li­te­ra­tura: já era hora de saber o que po­deria re­al­mente valer como es­critor», es­cre­veria, mais tarde, no texto au­to­bi­o­grá­fico. O re­sul­tado não po­deria ser me­lhor, com a pu­bli­cação su­ces­siva de uma vasto con­junto de obras que o afir­ma­riam como fi­gura ci­meira da li­te­ra­tura na­ci­onal e mun­dial: Le­van­tado do Chão (1980); Me­mo­rial do Con­vento (1982); O Ano da Morte de Ri­cardo Reis (1984); A Jan­gada de Pedra (1986); His­tória do Cerco de Lisboa (1989); O Evan­gelho se­gundo Jesus Cristo (1991); En­saio sobre a Ce­gueira (1995); Todos os Nomes (1997); A Ca­verna (2000); O Homem Du­pli­cado (2002); En­saio sobre a Lu­cidez (2004); As In­ter­mi­tên­cias da Morte (2005); A Vi­agem do Ele­fante (2008); Caim (2009), para além de peças de te­atro, li­vros de cró­nicas e de vi­a­gens, diário.

Em 1991, o go­verno por­tu­guês, li­de­rado por Ca­vaco Silva, veta a apre­sen­tação do ro­mance O Evan­gelho Se­gundo Jesus Cristo ao prémio li­te­rário eu­ropeu, sob o pre­texto de que o livro era ofen­sivo para os ca­tó­licos. Dois anos de­pois, o es­critor muda-se com a mu­lher, Pilar del Rio, para a ilha de Lan­za­rote, nas Ca­ná­rias.

Ao longo de todo este pe­ríodo, de pro­fícua pro­dução li­te­rária, o es­critor co­mu­nista pros­se­guiu a sua ac­ti­vi­dade po­lí­tico-par­ti­dária: nas elei­ções au­tár­quicas de 1989, pro­posto pelo PCP, in­tegra a lista da co­li­gação Por Lisboa e é eleito pre­si­dente da As­sem­bleia Mu­ni­cipal. Foi ainda can­di­dato ao Par­la­mento Eu­ropeu em todas as elei­ções, de 1987 a 2009.

Como jus­ta­mente lembra a nota emi­tida pelo Se­cre­ta­riado do Par­tido no sá­bado, 19 de Junho, «fa­lando dos seus li­vros, José Sa­ra­mago disse um dia: “Creio que nada ou quase nada do que fiz de­pois do 25 de Abril, podia ter sido feito antes” - pa­la­vras que nos con­firmam que a obra de José Sa­ra­mago é, também ela, uma con­quista de Abril».

Ga­lardão atri­buído em 1998
O único Nobel da Li­te­ra­tura de língua por­tu­guesa

Ao ser ga­lar­doado, em 1998, com o Prémio Nobel da Li­te­ra­tura, José Sa­ra­mago tornou-se assim o pri­meiro, e até agora único, es­critor de língua por­tu­guesa a quem foi atri­buído esse prémio. No dia 7 de Ou­tubro desse ano, na ce­ri­mónia de atri­buição desse prémio, em Es­to­colmo, pe­rante des­ta­cadas in­di­vi­du­a­li­dades do meio cul­tural, ar­tís­tico e po­lí­tico (entre os quais os reis da Suécia), José Sa­ra­mago co­meçou por falar não de si pró­prio, mas do homem «mais sábio» que co­nheceu em toda a sua vida – que, lem­brou, «não sabia ler nem es­crever».

Esse homem, o seu avô, «às quatro da ma­dru­gada, quando a pro­messa de um novo dia ainda vinha em terras de França, le­van­tava-se da en­xerga e saía para o campo, le­vando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fer­ti­li­dade se ali­men­tavam ele e a mu­lher. Vi­viam desta es­cassez os meus avós ma­ternos, da pe­quena cri­ação de porcos que, de­pois do des­mame, eram ven­didos aos vi­zi­nhos da al­deia».

Nesse mesmo dis­curso, pu­bli­cado mais tarde numa bro­chura, José Sa­ra­mago re­co­nheceu onde foi buscar as suas per­so­na­gens: «ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de li­te­ra­tura, trans­for­mando-os, de sim­ples pes­soas de carne e osso que ha­viam sido, em per­so­na­gens no­va­mente e de outro modo cons­tru­toras da minha vida, es­tava, sem o per­ceber, a traçar o ca­minho por onde as per­so­na­gens que vi­esse a in­ventar, as ou­tras, as efec­ti­va­mente li­te­rá­rias (…) aca­ba­riam por fazer de mim a pessoa em que hoje me re­co­nheço: cri­ador dessas per­so­na­gens, mas, ao mesmo tempo, cri­a­tura delas».

No Le­van­tado do Chão, con­fessou ainda, es­tavam os «ho­mens e as mu­lheres do Alen­tejo, aquela mesma ir­man­dade de con­de­nados da terra a que per­ten­ceram o meu avô Je­ró­nimo e a minha avó Jo­sefa, cam­po­neses rudes obri­gados a alugar a força dos braços a troco de um sa­lário e de con­di­ções de tra­balho que só me­re­ce­riam o nome de in­fames, co­brando por menos que nada a vida a que os seres cultos e ci­vi­li­zados que nos pre­zamos de ser apre­ci­amos chamar, se­gundo as oca­siões, pre­ciosa, sa­grada ou su­blime».

No dia em que re­gressou a Lisboa após a atri­buição do Nobel – lembra-se na nota do Se­cre­ta­riado do Co­mité Cen­tral – o Par­tido «prestou-lhe ho­me­nagem numa sessão me­mo­rável, no Centro de Tra­balho Vi­tória – e, aca­bada a sessão, di­rigiu-se para o Ter­reiro do Paço a dar um abraço so­li­dário aos tra­ba­lha­dores que ali le­vavam a cabo uma jor­nada de luta contra mais um pa­cote anti-la­boral dis­pa­rado pelo go­verno então de ser­viço à po­lí­tica de di­reita». Dez anos de­pois, em 2008, o Salão do Vi­tória voltou a en­cher-se – e a contar no­va­mente com a pre­sença de José Sa­ra­mago – para as­si­nalar a pas­sagem de uma dé­cada sobre essa data maior para a cul­tura por­tu­guesa. Na oca­sião, Je­ró­nimo de Sousa su­bli­nhou jus­ta­mente que a con­dição de co­mu­nista de José Sa­ra­mago e a «gran­deza da sua obra li­te­rária não são fa­cil­mente dis­so­ciá­veis: estou em crer que, sem essa con­dição, a massa hu­mana de muitos dos seus li­vros não se mo­veria com o mesmo fulgor e não se sen­tiria em muitos deles o pe­noso, trá­gico, exal­tante, con­tra­di­tório, lu­mi­noso, som­brio, in­ces­sante mo­vi­mento da his­tória».

Nesse mesmo ano, na Festa do Avante!, José Sa­ra­mago tinha já sido ho­me­na­geado. Não po­dendo estar pre­sente, por mo­tivos de saúde, en­viou uma fra­terna men­sagem em que sau­dava os cons­tru­tores da Festa, aqueles que, «com o seu tra­balho vo­lun­tário, e não pe­dindo nada em troca, cons­troem a Festa»; aqueles para os quais «a Festa é in­dis­pen­sável» e que «são também in­dis­pen­sá­veis à Festa».



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