Fugiu-lhe a boca para a verdade

José Casanova
Dizem-me que, há dias, numa estação de rádio, o primeiro-ministro procedeu a um rasgado elogio aos méritos do seu governo e da política por ele praticada. Até aqui, nada de novo: o cultivo do auto elogio é, para José Sócrates, o pão dele de cada dia (sendo certo, também, que quanto mais o exercita mais deixa transparecer o seu pendor arrogante, autoritário e prepotente). José Sócrates sabe, por experiência própria e por experiências de outros, que a repetida repetição de uma mentira faz com que a dita seja aceite por muita gente como verdade. Um exemplo: quando este governo iniciou a sua prestação – pondo em prática a política mais à direita e mais anti Abril de sempre – os analistas políticos de serviço aos interesses do grande capital começaram todos a louvar, em coro síncrono, aquilo a que chamavam «a coragem de José Sócrates» - expressão que, à força de difundida todos os dias em todos os média propriedade do grande capital, se infiltrou na linguagem corrente e cedo passou de opinião muitas vezes publicada a opinião pública. Sobre o conteúdo dessa coragem nada foi dito: tratava-se de uma abstracção, já que tal coragem tinha a ver com o facto de o corajoso primeiro-ministro, intérprete fidelíssimo dos desejos e anseios dos chefes dos grandes grupos económicos e financeiros, estar a dar andamento a uma brutal ofensiva contra tudo o que de mais importante resta da revolução Abril, aí incluídos o conteúdo democrático do regime, os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores e dos cidadãos e muitos outros direitos consagrados na Constituição.
Mas voltemos à acima referida operação propagandística do primeiro-ministro aos microfones de uma estação de rádio. Disse ele, a dada altura do seu caudaloso discurso que, em consequência da política que está a praticar (referia-se, certamente, ao desemprego, à precariedade, à liquidação do serviço nacional de saúde, ao aumento das injustiças sociais, à existência de ricos cada vez mais ricos e de pobres cada vez mais pobres, etc, etc.), disse ele, José Sócrates, para quem o quis ouvir: «Portugal será um país mais justo, mais pobre…» - aqui chegado, assaltou-o um sobressalto de verdade... Não consta que tenha corado. Nem se atrapalhou. Após breve pausa, com o à vontade com que usa dizer, não a verdade mas o que lhe convém em cada momento, acrescentou: «perdão, mais solidário». E, perdoando-se, foi-se embora, todo satisfeito.


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