A fingir
D. José Policarpo, cardeal patriarca de Lisboa, publicou no site do Patriarcado uma mensagem garantindo que «o cruzamento dos métodos anticoceptivos com os métodos abortivos e as soluções químicas para a interrupção da gravidez fizeram diminuir a realidade do aborto de vão-de-escada» em Portugal, pelo que, segundo ele, «esta nova realidade traz a decisão de abortar para o campo da liberdade pessoal e da consciência e não é razão para esta alteração na Lei».
Em primeiro lugar, o País gostaria de saber onde foi D. José Policarpo desencantar as provas, os factos e os números que lhe permitem garantir que os abortos de vão-de-escada estão a diminuir em Portugal, dado que, nesta matéria, o que de concreto se sabe é que são muitos – na ordem das largos milhares por ano – e que uma grave percentagem deles continua, notoriamente, a ser praticada nas condições indignas dos tais «vãos-de-escada», como regularmente o provam os internamentos hospitalares de mulheres trucidadas por abortos mal executados.
Em segundo lugar, registe-se a curiosa inflexão do cardeal patriarca em relação ao actual discurso oficial da Igreja Católica, ao admitir «o cruzamento dos métodos anticoceptivos» com «as soluções químicas para a interrupção da gravidez» quando, na doutrina desenvolvida pelos dois últimos papas, a proibição do aborto vai tão a montante que anatemiza ferozmente os próprios métodos anticonceptivos, ao extremo de diabolizar o uso do preservativo, mesmo que isso exponha a Humanidade à SIDA.
Todavia, mesmo que D. José Policarpo estivesse certo nesta prodigiosa diminuição dos «abortos de vão-de-escada», tal «nova realidade» nunca poderia implicar uma alteração do estatuto do acto face à legislação actual (segundo o patriarca, «traz a decisão de abortar para o campo da liberdade pessoal e da consciência»), pela linear razão de que o que está, e sempre esteve, em causa nesta Lei não é qualquer apreciação ou julgamento sobre a decisão de abortar mas, simplesmente, a despenalização e a descriminalização das mulheres, do acto e de quem o realiza.
Dito por outras palavras, o que se discute não é a legitimidade ou ilegitimidade da decisão de abortar, mas a legitimidade ou ilegitimidade de o Estado castigar, através da Lei e da máquina judiciária, quem protagoniza e pratica um aborto.
O cardeal patriarca também se manifesta surpreendido na sua mensagem pelo slogan do «Sim» que afirma «Nem mais uma mulher para a cadeia», salientando que, nos últimos 30 anos, nenhuma mulher foi presa por esse motivo, «tendo apenas existido alguns julgamentos», acrescentando que «também me consta terem sido dadas instruções à PJ para não ter entre as suas prioridades as investigações sobre o “crime” do aborto».
Assinale-se, aqui, tanto a displicência com que o cardeal patriarca menoriza a acção repressiva do Estado sobre as mulheres e o acto de abortar («nenhuma mulher foi presa» e apenas existiram «alguns julgamentos»), como a ausência de uma atitude, uma referência, uma simples palavra para a extrema humilhação que é sujeitar uma mulher, já tão abalada pelo aborto que se viu compelida a realizar, ao julgamento público deste acto num quadro de criminalização, vexame e desonra.
Pelos vistos, é preferível e suficiente contar com a distracção cúmplice da Judiciária e, certamente, também da máquina judiciária. Ou seja, para acabar com um problema, nada como fingir que não existe...
Em primeiro lugar, o País gostaria de saber onde foi D. José Policarpo desencantar as provas, os factos e os números que lhe permitem garantir que os abortos de vão-de-escada estão a diminuir em Portugal, dado que, nesta matéria, o que de concreto se sabe é que são muitos – na ordem das largos milhares por ano – e que uma grave percentagem deles continua, notoriamente, a ser praticada nas condições indignas dos tais «vãos-de-escada», como regularmente o provam os internamentos hospitalares de mulheres trucidadas por abortos mal executados.
Em segundo lugar, registe-se a curiosa inflexão do cardeal patriarca em relação ao actual discurso oficial da Igreja Católica, ao admitir «o cruzamento dos métodos anticoceptivos» com «as soluções químicas para a interrupção da gravidez» quando, na doutrina desenvolvida pelos dois últimos papas, a proibição do aborto vai tão a montante que anatemiza ferozmente os próprios métodos anticonceptivos, ao extremo de diabolizar o uso do preservativo, mesmo que isso exponha a Humanidade à SIDA.
Todavia, mesmo que D. José Policarpo estivesse certo nesta prodigiosa diminuição dos «abortos de vão-de-escada», tal «nova realidade» nunca poderia implicar uma alteração do estatuto do acto face à legislação actual (segundo o patriarca, «traz a decisão de abortar para o campo da liberdade pessoal e da consciência»), pela linear razão de que o que está, e sempre esteve, em causa nesta Lei não é qualquer apreciação ou julgamento sobre a decisão de abortar mas, simplesmente, a despenalização e a descriminalização das mulheres, do acto e de quem o realiza.
Dito por outras palavras, o que se discute não é a legitimidade ou ilegitimidade da decisão de abortar, mas a legitimidade ou ilegitimidade de o Estado castigar, através da Lei e da máquina judiciária, quem protagoniza e pratica um aborto.
O cardeal patriarca também se manifesta surpreendido na sua mensagem pelo slogan do «Sim» que afirma «Nem mais uma mulher para a cadeia», salientando que, nos últimos 30 anos, nenhuma mulher foi presa por esse motivo, «tendo apenas existido alguns julgamentos», acrescentando que «também me consta terem sido dadas instruções à PJ para não ter entre as suas prioridades as investigações sobre o “crime” do aborto».
Assinale-se, aqui, tanto a displicência com que o cardeal patriarca menoriza a acção repressiva do Estado sobre as mulheres e o acto de abortar («nenhuma mulher foi presa» e apenas existiram «alguns julgamentos»), como a ausência de uma atitude, uma referência, uma simples palavra para a extrema humilhação que é sujeitar uma mulher, já tão abalada pelo aborto que se viu compelida a realizar, ao julgamento público deste acto num quadro de criminalização, vexame e desonra.
Pelos vistos, é preferível e suficiente contar com a distracção cúmplice da Judiciária e, certamente, também da máquina judiciária. Ou seja, para acabar com um problema, nada como fingir que não existe...