Santa relatividade

Anabela Fino
Dizer que tudo é relativo tornou-se um lugar tão comum que corremos o risco de perder de vista a relatividade das coisas, ou seja, que também é relativo que tudo seja relativo, sobretudo quando o que está em causa são questões que não se compadecem com relativismos.
Basta pensar, por exemplo, na fome que afecta milhões de seres humanos em todo o mundo ou no sofrimento dos flagelados pela guerra onde quer que ela seja, para perceber que essa coisa da relatividade não tem nada a ver com os ventres inchados das crianças ou com os corpos sem idade decepados pelas bombas, por mais que os bem nutridos e melhor armados nos queiram fazer ver o contrário.
Também as promessas eleitorais logo esquecidas após a conquista do poder, seja lá onde for, nada têm de relativo, mesmo sabendo nós que o discurso politicamente correcto instituiu como regra de ouro que não é de bom tom chamar mentirosos aos governantes que aldrabam o povo a torto e direito.
Onde a relatividade abunda, há que reconhecê-lo, é nas contas que alguns fazem para levar a água ao seu moinho. Veja-se, por exemplo, o caso do ministro das Finanças, Manuel Pinho, que a fazer fé no Diário Económico desta segunda-feira vai poupar 3,5 milhões de euros nos cortes de pessoal do seu Ministério, quando ainda há dias, sempre segundo a imprensa, deu luz verde a um rombo estimado em 120 milhões para fazer um agrado à Banca. Está a poupar muito ou a gastar demais? É relativo. Depende obviamente do objectivo.
Outro tanto se poderá dizer das contas de Sócrates enquanto secretário-geral do PS, que este fim-de-semana não só interpretou a sua reeleição no cargo como «um sinal claro de apoio dos militantes do PS à linha política de governação» que vem sendo seguida, como concluiu que «os números [da votação] espelham um partido mobilizado, atento, interveniente, que está bem consciente das suas responsabilidades e que deseja participar na política e no debate sobre os problemas do país».
Talvez estejamos enganados, mas Sócrates parece ter posto mais «na carta» do que seria aconselhável. É bem verdade, segundo consta, que foi eleito com 97,2 por cento dos votos e garantiu 99 por cento dos delegados ao seu XV Congresso – com outros protagonistas se diria ser o peso do aparelho –, mas como a relatividade, apesar de não ser um valor absoluto, também não é uma batata, convém saber com 97,2 por cento de quanto é que Sócrates foi eleito.
Ora, e os números não são nossos, nas «eleições» socialistas votaram cerca de 25 mil dos 89 mil militantes que o PS diz ter. Contas feitas, dá qualquer coisa como 28 por cento. Escasso, muito escasso para cantar de galo e menos ainda para daí inferir o «sinal claro de apoio dos militantes» que o secretário-geral Sócrates quer transferir para o primeiro-ministro Sócrates.
Mas as contas não se podem fazer assim, dirão os indefectíveis, pois dos 89 mil inscritos apenas 32 mil têm as quotas pagas, condição indispensável para votar, e a ter em conta este dado veremos que votaram cerca de 78 por cento, nada mau, hã?
Pois é, por isso é que Sócrates perdeu uma boa ocasião de estar calado quando, talvez para animar as hostes, fez o discurso do «partido mobilizado, atento, interveniente», etc., etc., etc. Tanto mais que há registos do passado – justamente porque a memória é curta – a atestar que em 2004, só lá vão dois anos, em eleições idênticas votaram 36 mil militantes e nessa altura Sócrates obteve 28 520, ou seja, números redondos, mais onze mil e o actual primeiro-ministro recebeu mais votos do que a totalidade dos que desta vez foram às urnas.
Se isto é apoio e a isto se chama mobilização.... que a relatividade lhes valha.


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