Sacudir a água do capote

Margarida Botelho
Na semana passada, um temporal fortíssimo afligiu o país de norte a sul. Em poucas horas, muitos milhares de portugueses ficaram com a vida virada do avesso: casas inundadas, carros destruídos, negócios literalmente por água abaixo. E mais: equipamentos colectivos sem funcionar, as linhas do Norte e do Algarve interrompidas, estradas cortadas, muitos milhares de pessoas sem água, luz ou comunicações. No distrito de Bragança, durante todo o dia 25, o número de emergência não funcionou. Pior: em Pombal morreu uma senhora. E ainda nem sequer começou o Inverno…
No meio do caos e de muito desespero, gestos de solidariedade e esperança, entre vizinhos, desconhecidos, trabalhadores das autarquias, bombeiros, membros das forças de segurança. Gente que apareceu para ajudar a limpar ou trabalhadores que ficaram bem para lá do horário de trabalho a tentar conter água e lama. Gestos que o povo português tem repetido sempre nas horas mais difíceis e que contrastam com a frieza de outros gestos.
Gestos ganciosos, como os das companhias de seguros, inchadas de lucros, que se recusam a cobrir os prejuízos de quem ficou com a casa cheia de água, viu os negócios submersos num caudal de lama ou o carro submerso até ao tejadilho.
Gestos de abutre, como o do Millenium-BCP, que em poucas horas criou e publicitou uma linha de crédito para particulares e empresas para fazer face aos “prejuízos com o mau tempo”, agravando ainda mais a situação das famílias e dos pequenos empresários, endividados pela política de direita.
Gestos calculistas, como o do Ministro da Administração Interna, a empurrar responsabilidades para o colega do Ministério do Ambiente e a dizer coisas redondas – no tom de quem não quer ser mais maçado com assuntos menores – “é preciso apurar responsabilidades”. Como se o sr. Ministro e o PS tivessem nascido ontem para a governação. Como se não tivessem responsabilidades em casos conhecidos de construções autorizadas em leitos de cheia. Como se não promovessem a irresponsabilidade de não fazer obras fundamentais para a segurança de pessoas e bens, incluídas em sucessivos Orçamentos de Estado, sem que se concretizem nunca, ou fazendo-as da maneira mais barata possível. Como se não soubessem que as florestas ardidas que o Estado se desresponsabilizou de limpar no Verão se transformam no Inverno em enxurradas e deslizamento de terras.
É como diz o outro: a culpa não devia morrer solteira…


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