Uma questão política
Três mulheres foram anteontem condenadas pelo Tribunal de Aveiro a seis meses de prisão por terem feito um aborto há nove anos. O médico acusado de fazer os três abortos foi por sua vez condenado a quatro anos e oito meses de prisão efectiva, e a recepcionista do consultório, acusada de cumplicidade, a uma pena de um ano e quatro meses de cadeia, suspensa por três anos.
O mesmo Tribunal havia absolvido as acusadas em 2004, por falta de provas, mas a Relação de Coimbra mandou repetir a sentença, declarando nulo o primeiro acórdão, por considerar legais os exames ginecológicos feitos pelas arguidas que serviram de base à acusação.
Fundamentando a nova sentença, os juizes lembraram que não cabe aos tribunais dirimir a controvérsia sobre a questão do aborto em Portugal mas tão só aplicar a lei em vigor, defendendo que o problema é de âmbito político, pelo que compete aos que «têm por missão interpretar e dar respostas aos anseios da população, através da produção legislativa», encontrar as soluções para o conflito.
Não é difícil perceber nesta declaração o incómodo dos juizes por se verem constrangidos a aplicar uma lei iníqua. Tal como não é difícil perceber como se sentirão as mulheres condenadas – que à data do alegado crime tinham 18, 19 e 21 anos, respectivamente –, e mesmo tendo em conta que a pena que lhes foi aplicada é suspensa por dois anos, por se verem assim estigmatizadas para a vida.
Difícil, isso sim, é perceber que o PS, através de Vitalino Canas, venha comentar o desenlace deste caso dizendo que, «em termos abstractos», regista que a «questão do aborto continua a ser uma questão urgente, uma vez que os cidadãos continuam a ser penalizados». Ou que o PDS, pelas palavras de Montalvão Machado, se limite a dizer que não costuma «comentar decisões dos tribunais». Ou ainda que o CDS, via Nuno Melo, sacuda a água do capote dizendo que «esta não é uma decisão arbitrária, é dos tribunais, mas que permite recurso para tribunal superior».
Podíamos ainda referir as lágrimas de crocodilo de organizações ditas pró vida que, defendendo a criminalização do aborto, dizem lamentar a prisão imposta às mulheres, mas nem vale a pena o tempo perdido com tamanha hipocrisia.
O que vale a pena questionar é a legitimidade de uma sociedade em dispor das suas mulheres como mero objecto, seja de reprodução ou outro, recusando-lhes o direito de decidir do seu próprio corpo e impondo-lhe a maternidade indesejada a qualquer preço.
O que vale a pena questionar é a hipocrisia de uma sociedade que sanciona a pílula do dia seguinte e criminaliza o aborto, apesar de se saber que nenhum método anticonceptivo é cem por cento infalível.
O que vale a pena questionar é que sociedade é esta – e que partidos políticos são estes há tantos anos no Poder – que não hesita na devassa privada e punição dos que não têm recursos para comprar o silêncio ou a viagem à clínica no estrangeiro, e prefere manter o privado e muito lucrativo negócio do aborto clandestino a reconhecer às mulheres e aos homens o direito a decidir sobre a sua própria descendência.
O aborto clandestino, responsável pela morte de tantas mulheres, é um flagelo social que não se resolve com penas de prisão. Menos hipocrisia e mais responsabilidade é quanto basta para lhe pôr termo. Uma opção difícil, concedemos, para os que para aí andam escondendo privadas iniquidades e pregando públicas virtudes.
O mesmo Tribunal havia absolvido as acusadas em 2004, por falta de provas, mas a Relação de Coimbra mandou repetir a sentença, declarando nulo o primeiro acórdão, por considerar legais os exames ginecológicos feitos pelas arguidas que serviram de base à acusação.
Fundamentando a nova sentença, os juizes lembraram que não cabe aos tribunais dirimir a controvérsia sobre a questão do aborto em Portugal mas tão só aplicar a lei em vigor, defendendo que o problema é de âmbito político, pelo que compete aos que «têm por missão interpretar e dar respostas aos anseios da população, através da produção legislativa», encontrar as soluções para o conflito.
Não é difícil perceber nesta declaração o incómodo dos juizes por se verem constrangidos a aplicar uma lei iníqua. Tal como não é difícil perceber como se sentirão as mulheres condenadas – que à data do alegado crime tinham 18, 19 e 21 anos, respectivamente –, e mesmo tendo em conta que a pena que lhes foi aplicada é suspensa por dois anos, por se verem assim estigmatizadas para a vida.
Difícil, isso sim, é perceber que o PS, através de Vitalino Canas, venha comentar o desenlace deste caso dizendo que, «em termos abstractos», regista que a «questão do aborto continua a ser uma questão urgente, uma vez que os cidadãos continuam a ser penalizados». Ou que o PDS, pelas palavras de Montalvão Machado, se limite a dizer que não costuma «comentar decisões dos tribunais». Ou ainda que o CDS, via Nuno Melo, sacuda a água do capote dizendo que «esta não é uma decisão arbitrária, é dos tribunais, mas que permite recurso para tribunal superior».
Podíamos ainda referir as lágrimas de crocodilo de organizações ditas pró vida que, defendendo a criminalização do aborto, dizem lamentar a prisão imposta às mulheres, mas nem vale a pena o tempo perdido com tamanha hipocrisia.
O que vale a pena questionar é a legitimidade de uma sociedade em dispor das suas mulheres como mero objecto, seja de reprodução ou outro, recusando-lhes o direito de decidir do seu próprio corpo e impondo-lhe a maternidade indesejada a qualquer preço.
O que vale a pena questionar é a hipocrisia de uma sociedade que sanciona a pílula do dia seguinte e criminaliza o aborto, apesar de se saber que nenhum método anticonceptivo é cem por cento infalível.
O que vale a pena questionar é que sociedade é esta – e que partidos políticos são estes há tantos anos no Poder – que não hesita na devassa privada e punição dos que não têm recursos para comprar o silêncio ou a viagem à clínica no estrangeiro, e prefere manter o privado e muito lucrativo negócio do aborto clandestino a reconhecer às mulheres e aos homens o direito a decidir sobre a sua própria descendência.
O aborto clandestino, responsável pela morte de tantas mulheres, é um flagelo social que não se resolve com penas de prisão. Menos hipocrisia e mais responsabilidade é quanto basta para lhe pôr termo. Uma opção difícil, concedemos, para os que para aí andam escondendo privadas iniquidades e pregando públicas virtudes.