A vida para lá do «Mundial»

Jorge Cordeiro
Contra a corrente e sujeitos a arrasadores juízos aqui ficarão registadas, recusando uma mais cómoda deserção à questão, algumas reflexões sobre o clima de emotividade sem limites que tem vindo a ser criado em torno da participação no Mundial de Futebol.
A pandemia informativa que parece ter contagiado os principais meios de comunicação social, a programada promoção de exaltação nacional por parte de importantes grupos financeiros traduzida na «desinteressada» distribuição de ícones ou os disparatados apelos por parte do selecionador nacional não só não encontram explicação nos limites do interesse desportivo como invadem deliberadamente o domínio da vida do país.
O Mundial da Alemanha de Junho próximo deixou, por determinação de alguns, de constituir um momento de festa de um desporto eminentemente popular, arrebatador e apaixonante, para se assumir como uma oportunidade para, explorando o gosto pelo futebol, se transformar num acontecimento capaz de desviar a atenção do país, dos seus dramas e problemas. A legitima expectativa e o desejo genuíno de milhões de portugueses de verem a sua selecção alcançar uma classificação positiva está a dar lugar, pela engenhosa manipulação desse sentimento, a um apelo a um nacionalismo sem conteúdo nem sentido.
Olhando à nossa volta dificilmente se concluiria que em Junho o que decorrerá na Alemanha é tão só um torneio de futebol envolvendo 32 equipas, representando igual número de selecções nacionais de todos os continentes, em busca da melhor classificação desportiva. Pelo que, dito isto, se deva acrescentar que a aspiração a um bom resultado, fundada na qualidade dos nossos jogadores mas também na expressão de apoio à equipa do nosso país, é inteiramente legitima. O que já não o seria era ver esse compreensível desejo de um desempenho desportivo positivo transformado em escrutínio e avaliação de capacidade nacional.
Em Junho não se decide do futuro do país. Seja qual for a classificação. Nem a inebriante perspectiva da conquista do título fará de Portugal o mais desenvolvido país do mundo nem uma menos bem sucedida participação desportiva nos tornará pior do que somos enquanto nação.
Em Junho não se decide da nossa afirmação nacional. Sejam quais forem os resultados o futuro de Portugal enquanto nação livre e soberana não se joga ali, mas sim na nossa política externa, na não submissão a estratégias e objectivos de países terceiros, na afirmação de uma política ditada pelo interesse nacional.
E por último, mas não menos importante, depois de Junho, seja qual for o resultado, o país real cá estará com os seus problemas. Tão menos agravados quanto, não nos deixando distrair, se puder ver vida para além de uns quantos jogos de futebol e se continuar a resistir ao que todos os dias a política do actual governo e a acção do grande patronato nos vai reservando.


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