Lucros grossos, gelo fino

Jorge Cadima

Como se vê, a vida não está difícil para todos

Não é apenas em Portugal que as «dificuldades económicas» dos últimos anos se traduziram em lucros recorde para o grande capital (Suplemento económico do Público, 28.3.05). Segundo a revista The Economist (12.2.05) «no ano passado, os lucros líquidos na América alcançaram, como proporção do PIB, o mais alto nível dos últimos 75 anos; a parte correspondente aos lucros na zona euro e no Japão também está próxima do seu nível mais elevado dos últimos 25 anos. O UBS, um banco Suíço, estima que no conjunto das economias dos G7, a proporção dos lucros no rendimento nacional nunca foi mais elevada. [...] Nos últimos três anos, os lucros das grandes empresas americanas cresceram 60%». Como se vê, a vida não está difícil para todos.

Mas por detrás destes números há também uma outra faceta da realidade. Essa faceta é abordada, em artigo no Washington Post (10.4.05), por Paul Volcker, que foi Presidente da Reserva Federal (Banco Central dos EUA) entre 1979 e 1987. Falando da situação económica global numa linguagem muito mais franca do que a das intervenções oficiais do seu sucessor Alan Greenspan, Volcker afirma: «Por debaixo duma aparência calma, existem tendências perturbadoras: enormes desajustamentos, desequilíbrios, riscos – chamem-lhe o que quiserem. Globalmente, a conjuntura parece-me ser tão perigosa e difícil como qualquer de que me recorde, e eu recordo-me de muita coisa.» A propósito da superpotência do capitalismo dos nossos dias, diz o ex-banqueiro central dos EUA: «enquanto nação, consumimos e investimos cerca de 6 por cento a mais daquilo que produzimos. O que mantém isto tudo a funcionar é o gigantesco e crescente fluxo de capital proveniente do exterior, que totaliza mais de 2 mil milhões de dólares por cada dia de trabalho. [...] Em geral, era o capital privado [estrangeiro] que fluía livremente para os nossos mercados [...]. Mais recentemente, tornámo-nos dependentes de bancos centrais estrangeiros, em particular da China e Japão, e outros da Ásia Oriental. [...] O problema é que esta situação aparentemente cómoda não pode continuar indefinidamente. Não conheço qualquer país que tenha conseguido manter-se durante muito tempo a consumir e investir 6 por cento a mais daquilo que produz. Os Estados Unidos absorvem hoje cerca de 80 por cento dos fluxos líquidos de capital mundial. Chegará o momento em que bancos centrais e investidores privados estarão saciados de dólares. Não sei se a mudança virá com um estoiro, ou suavemente, se virá mais cedo ou mais tarde. Mas, tal como as coisas estão hoje, o mais provável é que serão crises financeiras, e não decisões previdentes, que irão trazer a mudança. [...] Estamos a patinar em cima de gelo cada vez mais fino».

A análise do ex-banqueiro central dos EUA não é uma novidade. No nosso país, há vários anos que as Resoluções Políticas dos Congressos do PCP (as tais que «nunca dizem nada de novo»...) alertam para o crescente endividamento do (cada vez mais parasitário e especulativo) capitalismo norte-americano e para as suas consequências potencialmente devastadoras. O facto de Paul Volcker juntar a sua voz ao coro de previsões preocupadas, é revelador da gravidade da situação. Os lucros grossos andaram de mãos dadas com o gelo fino. Quando se começarem a ouvir as rachas a estalar, lá virão os apelos «patrióticos» ao «sacrifício em prol do bem comum». Sacrifícios que serão para os trabalhadores e povos: para o grande capital ficaram os «bens comuns».

As lições da História do Século XX mostram que o capitalismo em crise é capaz das maiores violências e barbaridades. Desde a queda da URSS que assistimos a uma escalada dessa violência e barbárie por parte da superpotência imperialista. Detentora duma enorme superioridade militar e consciente da gravidade da sua situação, a classe dirigente dos EUA previne-se para um agravamento súbito da sua crise económica, à qual reagirá da única forma de que é capaz: pela guerra, a conquista e a rapina.


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