Clarividências

Jorge Cordeiro
As sondagens em França lançaram a inquietação nos que conceberam um Tratado que consagra em letra de lei fundamental os interesses do grande capital. Mil vezes arrependidos de não terem resolvido, discreta e eficazmente, a ratificação da coisa sem recurso a consultas populares, pensadas como momentos de consagração dos seus projectos e não arreliadoras expressões de incompreensão, os partidários do sim jogam tudo para inverter a tendência. Apesar da desproporção da batalha, a pressão interna e externa concentrada pelos partidários do sim tarda a revelar-se capaz de alterar a justificada desconfiança que as sondagens revelam prevalecer no campo da rejeição do Tratado. Não há arma que falte ao arsenal dos chamados europeístas: palavras de tranquilização dos mais altos responsáveis da União Europeia; chantageantes ameaças sobre as consequências de uma não ratificação; apocalípticas leituras sobre o destino de uma Europa sem texto constitucional; esforçados discursos à nação do presidente de lá, associados à desajeitada e lamentável mãozinha do presidente de cá.
São outras, que não o dos destinos da Europa, as razões de tanta inquietação. Não são os perigos sobre uma Europa de cooperação entre países iguais e soberanos que estão em causa, mas sim o projecto federalista que as grandes potências têm em caminho. Nem os alegados riscos para a construção de uma Europa social, só existente na propaganda dos partidários do Sim, mas as dúvidas que a expressão do Não faz pairar sobre a consagração constitucional do neoliberalismo.
Avisados que estão com os sinais de França, os construtores de uma europa federal e neoliberal tratam de prevenir novos sobressaltos. Na Inglaterra, Blair admite, já, resolver o problema reservando para a clarividência de uns quantos lordes a acertada decisão que a ignorância da plebe poderia desperdiçar. Por cá, não fosse um esclarecimento sério dar azo a mal formadas opiniões, PS e PSD preparam-se para salamizar o eventual referendo no meio de centenas de campanhas eleitorais autárquicas. Percebe-se porquê: cumpre-se a formalidade e ainda se garante uma honrosa afluência. Para os que se interrogam porque terá o PS mudado de opinião em menos de um ano, o sempre dedicado justificador oficioso das tropelias do PS, Vital Moreira, doutamente explica: o PS recusou a proposta de Durão para um referendo coincidente com as eleições europeias porque «as questões políticas se sobrepunham e as clivagens partidárias eram assimétricas nas duas votações.» (!). Das duas uma: ou um dos dois partidos mudou de posição quanto à questão europeia ou os seus projectos autárquicos são semelhantes. Falhada a primeira, agradece-se a clarividência quanto à segunda


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