Sob tortura
Mamdouh Habib, cidadão australiano nascido no Egipto, foi detido no Paquistão em Outubro de 2001, quando ali se deslocou numa visita exploratória para decidir se havia de emigrar para aquele país com a sua família. Foi brutalizado e interrogado durante 3 semanas. Em seguida, agentes da CIA levaram-no para o Egipto, onde foi interrogado por mais 6 meses. Em resultado da tortura que recebeu, Habib fez múltiplas (falsas) confissões. Voltou então à custódia dos EUA, para ser transportado para a Base Aérea estadunidense em Bagram, Afeganistão, e depois até o campo de concentração em Guantánamo, Cuba, donde foi solto em Janeiro passado. Durante todo este tempo, Habib nunca compareceu em tribunal.
É assim o sistema prisional globalizado do EUA. Suspeitos são mantidos à margem de qualquer processo judicial e transportados entre a rede de prisões internacionais operadas pelos EUA (na Tailândia, Qatar, Afeganistão, entre outros) e até países onde a prática de tortura seja corrente. Este programa de extradição de suspeitos, referido como «rendição extraordinária»1 teve início em 1995, durante a era Clinton, mas segundo vários elementos dos serviços de inteligência, saiu das estribeiras após o 11 de Setembro2.
Desde então, a CIA já «rendeu» cerca de 150 pessoas, sobretudo para o Egipto, Síria (!), Arábia Saudita, Jordânia e Paquistão3. O Pentágono já transferiu 62 prisioneiros de Guantánamo para o Paquistão, Marrocos, Kuwait, Arábia Saudita e outros. Cada um destes países foi identificado pelo próprio Departamento de Estado dos EUA, no seu relatório anual sobre os Direitos Humanos no Mundo, como países que habitualmente usam tortura nas suas prisões. (Repare-se que este relatório critica aliados dos EUA que recebem apoios financeiros volumosos, e inclui críticas ao governo transitório iraquiano, como se este não fosse um fantoche dos EUA, mas omite referência às torturas feitas pelos próprios soldados estadunidenses no Iraque, como em Abu Ghraib).
Novo paradigma
Alberto Gonzalez, então conselheiro da Casa Branca e actual Procurador General dos EUA, articulou o Novo Paradigma, segundo o qual «a capacidade de obter informações de terroristas capturados e seus apoiantes de forma a evitar futuras atrocidades» tem mais peso que os direitos dos suspeitos. Uma série de memorandos legais deu cobertura à decisão de Bush em suspender a aplicação das Convenções de Genebra na «guerra ao terrorismo», em Janeiro de 2002. A tortura foi redefinida de forma mais estreita, e embora a administração continue oficialmente a repudiá-la, faz uso da detenção em territórios fora da sua jurisdição, como os cerca de 550 prisioneiros ainda em Guantánamo, e rendições extraordinárias para usar formas as mais ferozes de tortura.
Agentes dos serviços de inteligência dos EUA criticam esta prática, até por razões pragmáticas: a qualidade da informação obtida sob tortura não é de confiança – muitos torturados confessam falsidades para alcançarem alívio. Jack Cloonan acompanhou, pelo FBI, o interrogatório de Ibn al-Sheikh al-Libi, que havia gerido um campo de treino da Al-Qaeda. A CIA, insatisfeita com agressividade do interrogatório, tomou conta do preso e enviou-o para o Egipto e depois para Guantánamo. Pensa-se que Libi terá sido a «fonte de informação» referida por Colin Powell na sua apresentação na ONU, em Fevereiro de 2003, da alegada ligação entre o Iraque e a Al-Qaeda.
Segundo Cloonan, Libi não poderia ter quaisquer informações sobre o Iraque: «oficiais da administração estavam sempre a pressionar-nos para encontrar ligações, mas não havia nenhumas. Receberam más informações porque a sacaram à força.» E segundo a Newsweek, Libi ter-se-á mesmo retractado da sua confissão. O mesmo sucedeu com as confissões forçadas dos três britânicos libertados de Guantánamo no ano passado. Dan Coleman, outro ex-agente do FBI, garante, pela sua experiência, que a segurança do cumprimento dos seus direitos torna os presos mais cooperantes.
De salientar que após detenção injustificada, sem consulta legal, e sujeitos a tortura, os suspeitos não poderão comparecer em tribunal. Os julgamentos de Zacarias Moussaoui, nos EUA, e de membros da célula de Hamburgo da Al-Qaeda, na Alemanha, suspeitos de ligações à organização dos ataques de 11 de Setembro, encontram-se paralisados em parte devido à recusa da administração Bush em permitir a comparência em tribunal de membros da Al-Qaeda sob a sua custódia4. Não podendo ser julgados legalmente, não sendo considerada segura a sua libertação, sendo-lhes impedida ajuda legal, muitos destes detidos enfrentam uma detenção indefinida sob chama da tocha da liberdade.
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1 Extraordinary rendition.
2 «Outsourcing Torture», de Jane Mayer, The New Yorker, de 14 de Fevereiro 2005.
3 «Rule change lets CIA freely send suspects abroad to jails», de D. Jehl e D. Johnston, New York Times, 6 de Março 2005.
4 Incluindo Ramzi bin al-Shibh e Khalid Sheikh Mohammed. Os EUA apresentaram resumos dos seus testemunhos no tribunal alemão, mas após apelo da defesa, a primeira pessoa a ser condenada pela participação nos ataques viu o seu veredicto revertido por estas testemunhas não poderem comparecer.
É assim o sistema prisional globalizado do EUA. Suspeitos são mantidos à margem de qualquer processo judicial e transportados entre a rede de prisões internacionais operadas pelos EUA (na Tailândia, Qatar, Afeganistão, entre outros) e até países onde a prática de tortura seja corrente. Este programa de extradição de suspeitos, referido como «rendição extraordinária»1 teve início em 1995, durante a era Clinton, mas segundo vários elementos dos serviços de inteligência, saiu das estribeiras após o 11 de Setembro2.
Desde então, a CIA já «rendeu» cerca de 150 pessoas, sobretudo para o Egipto, Síria (!), Arábia Saudita, Jordânia e Paquistão3. O Pentágono já transferiu 62 prisioneiros de Guantánamo para o Paquistão, Marrocos, Kuwait, Arábia Saudita e outros. Cada um destes países foi identificado pelo próprio Departamento de Estado dos EUA, no seu relatório anual sobre os Direitos Humanos no Mundo, como países que habitualmente usam tortura nas suas prisões. (Repare-se que este relatório critica aliados dos EUA que recebem apoios financeiros volumosos, e inclui críticas ao governo transitório iraquiano, como se este não fosse um fantoche dos EUA, mas omite referência às torturas feitas pelos próprios soldados estadunidenses no Iraque, como em Abu Ghraib).
Novo paradigma
Alberto Gonzalez, então conselheiro da Casa Branca e actual Procurador General dos EUA, articulou o Novo Paradigma, segundo o qual «a capacidade de obter informações de terroristas capturados e seus apoiantes de forma a evitar futuras atrocidades» tem mais peso que os direitos dos suspeitos. Uma série de memorandos legais deu cobertura à decisão de Bush em suspender a aplicação das Convenções de Genebra na «guerra ao terrorismo», em Janeiro de 2002. A tortura foi redefinida de forma mais estreita, e embora a administração continue oficialmente a repudiá-la, faz uso da detenção em territórios fora da sua jurisdição, como os cerca de 550 prisioneiros ainda em Guantánamo, e rendições extraordinárias para usar formas as mais ferozes de tortura.
Agentes dos serviços de inteligência dos EUA criticam esta prática, até por razões pragmáticas: a qualidade da informação obtida sob tortura não é de confiança – muitos torturados confessam falsidades para alcançarem alívio. Jack Cloonan acompanhou, pelo FBI, o interrogatório de Ibn al-Sheikh al-Libi, que havia gerido um campo de treino da Al-Qaeda. A CIA, insatisfeita com agressividade do interrogatório, tomou conta do preso e enviou-o para o Egipto e depois para Guantánamo. Pensa-se que Libi terá sido a «fonte de informação» referida por Colin Powell na sua apresentação na ONU, em Fevereiro de 2003, da alegada ligação entre o Iraque e a Al-Qaeda.
Segundo Cloonan, Libi não poderia ter quaisquer informações sobre o Iraque: «oficiais da administração estavam sempre a pressionar-nos para encontrar ligações, mas não havia nenhumas. Receberam más informações porque a sacaram à força.» E segundo a Newsweek, Libi ter-se-á mesmo retractado da sua confissão. O mesmo sucedeu com as confissões forçadas dos três britânicos libertados de Guantánamo no ano passado. Dan Coleman, outro ex-agente do FBI, garante, pela sua experiência, que a segurança do cumprimento dos seus direitos torna os presos mais cooperantes.
De salientar que após detenção injustificada, sem consulta legal, e sujeitos a tortura, os suspeitos não poderão comparecer em tribunal. Os julgamentos de Zacarias Moussaoui, nos EUA, e de membros da célula de Hamburgo da Al-Qaeda, na Alemanha, suspeitos de ligações à organização dos ataques de 11 de Setembro, encontram-se paralisados em parte devido à recusa da administração Bush em permitir a comparência em tribunal de membros da Al-Qaeda sob a sua custódia4. Não podendo ser julgados legalmente, não sendo considerada segura a sua libertação, sendo-lhes impedida ajuda legal, muitos destes detidos enfrentam uma detenção indefinida sob chama da tocha da liberdade.
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2 «Outsourcing Torture», de Jane Mayer, The New Yorker, de 14 de Fevereiro 2005.
3 «Rule change lets CIA freely send suspects abroad to jails», de D. Jehl e D. Johnston, New York Times, 6 de Março 2005.
4 Incluindo Ramzi bin al-Shibh e Khalid Sheikh Mohammed. Os EUA apresentaram resumos dos seus testemunhos no tribunal alemão, mas após apelo da defesa, a primeira pessoa a ser condenada pela participação nos ataques viu o seu veredicto revertido por estas testemunhas não poderem comparecer.