Oxalá

Vitor Dias (Membro da Comissão Política do PCP)
No passado dia 8, tudo indica que com a mesma naturalidade e tranquilidade de quem informa que o Outono está a chegar, Francisco Louçã anunciou a reapresentação na AR pelo Bloco de Esquerda de um projecto de lei de despenalização do aborto e, sem grandes explicações, esclareceu que aquela força política não reeditaria a exigência de um referendo.

Para que não se pense que ninguém tem memória e arquivos

A notícia em si mesma é boa sobretudo para quem, como o PCP, sempre insistiu na plena legitimidade de a AR legislar sobre o assunto, sempre sublinhou que era nesse terreno que os democratas deviam concentrar pressões e esforços e sempre se recusou a tornar-se prisioneiro da opção pelo referendo imposta em 1998 pela aliança PS/António Guterres e PSD/Marcelo Rebelo de Sousa.
Mas, sob pena de, pelo nosso silêncio, estarmos a contribuir para que os cidadãos sejam meros consumidores de factos políticos, portanto sem espirito crítico e capacidade de reflexão sobre eles, sobre os seus antecedentes e os seus nexos, não é bastante registar o caracter positivo desta notícia e desta significativa mudança de posição do Bloco de Esquerda.
Repetimos: a notícia é boa mas não é possível deixar de registar que, a avaliar pelos relatos da imprensa, Francisco Louçã se limitou a adiantar como argumento e explicação que, na actual legislatura, o caminho do referendo ficou «fechado» por responsabilidade da maioria governamental.
E, a este respeito, anote-se que já passaram cinco ou seis dias e ninguém na comunicação social inquiriu o Bloco de Esquerda e os seus dirigentes sobre duas coisas muito simples, a saber :
- mesmo dando de barato o discutível critério que adoptam da previsão da vontade da maioria como condicionante para a apresentação de iniciativas legislativas, não sabiam eles perfeitamente que, dado o acordo escrito de coligação entre PSD e PP, estes partidos com toda a probabilidade não consentiriam em qualquer referendo na actual legislatura ?
- - não sabem eles que, no passado dia 3 de Março, a direita chumbou não apenas as propostas de referendo (veiculadas pelo PS, pelo BE e por uma petição de cidadãos) mas também os projectos de lei de despenalização (do PCP, do PS, dos «Verdes» e do BE) e isso não impede o BE de voltar agora (tal como o PCP) a reapresentar os mesmos projectos de lei ?.

Argumentação frágil

O argumento invocado por F. Louçã é pois manifestamente frágil, fraco e improcedente para justificar o positivo regresso do Bloco de Esquerda ao campo de forças, à esquerda do PS, e de personalidades que durante os anos de 1999, 2000, 2001 e quase todo o 2002 (portanto, já depois de haver na AR uma maioria de direita) sempre se mantiveram convergentes na oposição ao recurso a um novo referendo nesta matéria e sempre sustentaram a prioridade da pressão para uma decisão favorável no âmbito da AR
Campo que o BE haveria de lamentavelmente de abandonar a partir do segundo semestre de 2002 para se alinhar pela posição do PS e da direcção de Ferro Rodrigues que, em Congresso, se tinham entretanto vinculado à realização de um novo referendo.
E para que não se pense que ninguém tem memória nem arquivos, assinale-se então que essa foi a época em que Miguel Portas (entrevista ao Euronotícias de 5.7.2002) não só anunciava o propósito da recolha de «75 mil assinaturas para um novo referendo sobre o aborto» como brandia o dedo em relação ao PCP afirmando: «quem quiser sujeitar leis do aborto à derrota parlamentar, prejudicando a causa do aborto, é livre de o fazer. Seja o Partido Comunista, seja a Juventude Socialista».
E, depois disto, como bastantes ainda se lembrarão, o que se seguiu foi mais de um ano de campanha do BE a erguer nas suas mãos a bandeira de um novo referendo (não percebendo ou não querendo perceber que uma coisa é enfrentar corajosamente o tipo de batalhas que outros podem impor e outra, de perversas consequências, é tornarmo-nos campeões das ideias e opções de outros), campanha que teve aliás traços muito pouco edificantes, como foram meses e meses sem a honestidade de explicar às pessoas que as assinaturas recolhidas não significavam automaticamente a realização de um referendo mas apenas que a AR discutiria e deliberaria sobre a realização de um referendo, como aliás o podia fazer sob proposta de qualquer partido.
Ou como o facto de, em vez de se terem limitado a sustentar – erroneamente, a nosso ver - que a proposta do referendo era a que mais entalava a direita, terem passado a endeusar, mesmo do ponto de vista conceptual, o recurso ao referendo ainda por cima numa matéria como a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
Agora, felizmente, tudo parece ter voltado à primeira forma. Mas oxalá que esta mudança do BE se baseasse num exame autocrítico da sua orientação anterior e, já agora, em algum arrependimento pelas injustas farpas e algumas insolências então dirigidas ao PCP.
Essa seria a forma de tirar razão aos que, já tendo visto muita coisa, desconfiam que o BE deixou cair o referendo sobretudo porque, se mantivesse essa exigência, ficaria insuportavelmente sozinho ao lado de José Sócrates e em posição oposta à agora claramente sustentada por Manuel Alegre e João Soares.


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