O Euro 2004, a euforia e as realidades
Se o leitor entender ler as linhas que se seguem, importa começar por lhe dizer que foram escritas no passado sábado de manhã e que jurei a mim mesmo, muito futebolisticamente, que não as iria alterar depois do Espanha-Portugal, a que iria ter o privilégio de assistir no Estádio José de Alvalade.
Os shares de televisão nestes dias e noutros apagaram e apagarão o país real
Dois resultados eram possíveis. Só dois, nesta grande festa do futebol.
Mas o nível de investimento emocional do país inteiro, com outros investimentos bem mais substanciais em termos financeiros, que alguns fizeram, foram muito altos. O investimento emocional arrisca levar a um pico o êxtase colectivo mas também levar a depressão nacional a um nível ainda mais baixo. Os outros investimentos terão sempre retorno, pela indução do orgulho em bonitos estádios e de consumos delirantes, por parte de quem deles se apropriou.
Os shares de televisão nestes dias, noutros dias antes, e certamente nalguns depois, apagaram e apagarão o país real, as suas realizações e problemas, bateram recordes europeus.
Essas audiências, o marketing e produtos derivados, a proliferação de bandeiras, forjaram uma «unidade» de âmbito nacional que fez passar para segundo plano as diferenças de classes, as desigualdades sociais crescentes, os abismos entre o litoral e o interior. Têm correspondido a uma catarse de aspirações não resolvidas nos planos pessoal, profissional, de realização e de condições de vida, de âmbito familiar.
Irá, assim, encerrar-se ou iniciar-se mais um ciclo em que se têm alternado depressões e estados de euforia. Estes, mais ou menos bem preparados por alguns que deles beneficiam sem reprodução suficiente em investimento produtivo, enquanto outros são consumidores materiais e de ideologia, sem que isso confira imediatamente e em jeito de julgamento conotação negativa em relação a grandes eventos. Como aconteceu, entre outros, com a Expo, o Nobel da Literatura.
Os ciclos, em si mesmos, não seriam também negativos se um dos seus pólos não correspondesse cada vez mais a uma escassez de meios produtivos, a uma baixa competitividade, a recursos educativos mais degradados, à falta de sustentação para uma afirmação própria no espaço europeu e globalizado.
O futebol, desporto importado por elites, acabou por assentar em todos os pontos do país, criando, como aconteceu com outros fenómenos culturais, uma nova origem popular uma dimensão da nossa afirmação, da nossa competitividade, da creditação, por associação de imagens, de credibilidades perdidas. Ele foi, então, objecto de tentativas de apropriação política pelos fascistas, que o mesmo tentaram fazer com o Fado, as Touradas ou Fátima, se sustentarem no quadro de um isolamento internacional do regime face à derrota do nazi-fascismo ou face às guerras coloniais. Desta tentativa de apropriação, com o lugar a que o fizeram ascender, o futebol desenvolveu a sua comercialização e tornou-se num grande espectáculo que praticamente ninguém enjeita. Mas a depressão que se pode seguir a uma euforia interrompida é real. A tentativa mais recente de apropriação com o «Força Portugal» teve o destino conhecido...
Mistura indesejável
A associação do fenómeno de massas que é o futebol a uma expressão de «nacionalismo», a um fenómeno alienatório de multidões, é redutora, como é redutora uma perspectiva anticlerical da religiosidade popular. Essas ambivalências, não deixam de ser um campo de luta também. Exprimem aspirações não resolvidas. São resposta a perplexidades em poder transformar o real, remetem as emoções para uma reprodução em «valores» comuns. Com a vantagem de dar a sensação que de futebol todos percebemos e podemos dar palpites, ao contrário de outras coisas transferidas para os «políticos» como a integração europeia, as origens da recessão, as políticas económicas, as guerras, que alguns querem fazer parecer mais complexas e distantes, mesmo que com isso vão aumentando a abstenção e fragilizando o edifício institucional da democracia.
Que a política se misture também com o futebol é inevitável, apesar de não ser desejável. Essa relação gera frequentemente desvios resultantes de interesses envolvidos como o da construção civil, a hotelaria ou a circulação ilícita de capitais. No limite, a politização do futebol e a futebolização da política, a responsabilidade do espectáculo na escassez do desenvolvimento desportivo mais amplo, não podem escapar às nossas preocupações políticas e aos nossos desempenhos a diversos níveis.
Esta relação pode ser grave para a democracia: a sua descredibilização pelo desempenho em cargos políticos resultantes, directa ou indirectamente, de eleições, dos que para isso contribuem quando, ao aspirar a mais votos, a credibilidades perdidas noutros tabuleiros ou a interesses mais prosaicos, acabam nalguns casos por cair nas malhas da lei. Ou quando a grandeza do espectáculo, em que alguns se apoiam para defender potencialidades económicas que teria, justifica a pressão sobre o financiamento público, mais ou menos encapotado, e acaba por não se reflectir como efeito duradouro na economia.
A mais esta «fuga para o pelotão da frente» pode seguir-se um estado depressivo, a níveis mais baixos. Mas até lá, vamos torcer pela equipa portuguesa!
Em tempo, domingo à noite: uma grande vitória sobre a Espanha, uma grande equipa e um público que puxou por ela o tempo todo e que, assim, puxa por uma vontade de novos tempos, de mais protagonismo popular e participação em obra colectiva, de afirmação, de identidade. O registo político do que escrevemos antes destas últimas linhas, mantém-se. Mas não ilude uma grande satisfação.