O caos

Henrique Custódio
Numa semana, foram mortos no Iraque cerca de 80 estrangeiros, a maior parte dos quais norte-americanos, e mais de 700 iraquianos. Uma onda de sequestros varreu o país, os ataques às chamadas «forças da coligação» transbordaram muito para além do célebre «triângulo sunita» pois, neste momento, ocorrem em todo o lado e envolvem tanto sunitas como xiitas, há cidades ou parte delas nas mãos dos rebeldes, a resposta dos ocupantes norte-americanos continua a regular-se pelo império da força e do desforço e o quadro geral aponta perigosamente para o caos.
Obviamente, nada disto é estranho ou, sequer, imprevisto. Estava mesmo «traçado no destino» - para usarmos um registo escatológico, tão ao gosto da administração Bush -, quando os EUA desencadearam a guerra contra o Iraque sem qualquer legitimidade ou mesmo pretexto admissível.
Também obviamente, a questão não estava na dificuldade em derrotar o exército de Saddam e ocupar o Iraque: destruir militarmente as forças de Bagdad com a investida maciça do mais poderoso exército do mundo sofria de tanta contingência como esmagar uma formiga com uma bota.
É, aliás, a vitória da bota sobre a formiga que os EUA podem alardear, no Iraque.
A grande dificuldade – igualmente tão óbvia, que apenas aventureiros irresponsáveis poderiam ignorá-la – estaria sempre, incontornável e mais certa que o destino, na ocupação do vasto território iraquiano.
Se a História mostra que não se vence uma guerra de guerrilhas nem mesmo em territórios diminutos, que dizer (e prever...) de tal situação num país como o Iraque?
O Iraque é vasto, nos sentidos essenciais: o do território, o da história e o da cultura. Segundo a Bíblia, até foi lá que Deus situou o Paraíso de Adão e Eva. Segundo a memória dos homens, foi também lá que a civilização humana lançou as suas primeiras raízes - o vasto território iraquiano alberga, pelo menos, sete mil anos da história da humanidade.
Pois foi este país que a administração Bush bombardeou com a mais abundante e sofisticada tecnologia de destruição, sob pretextos grosseiramente mentirosos, com descarada cobiça e depredação imperial e, ainda por cima, sem ponderar, prever, avaliar, prevenir ou planear convenientemente o que fazer depois com a ocupação do território.
Avassalados por uma arrogância obscura, os EUA apenas fizeram asneiras na ocupação: em vez de procurarem converter e aproveitar as diversas estruturas de poder do país, desmantelarem o partido Baas, dissolveram o exército e a polícia iraquianos, destruíram os serviços de informações, desarticularam a administração pública e o resultado foi imediatamente catastrófico: milhões de funcionários qualificados ficaram no desemprego, juntando-se nesse penoso estado à generalidade da população.
É óbvio que o país deixou, literalmente, de funcionar, enquanto o desencanto, primeiro, e a revolta, depois, foram e continuam fazendo o seu caminho entre toda a população, seja ela sunita, xiita ou curda.
Neste momento, os EUA têm 2500 militares a cercar a cidade santa de Najaf e afirmam-se dispostos a arrasá-la para capturar o líder xiita Moqtada al-Sadr, agora apontado como o grande responsável pelas insurreições generalizadas que grassam pelo país.
Os acusados pelos ataques já foram «as milícias de Saddam», depois passaram a ser «os restos do exército de Saddam», mais tarde já eram «fundamentalistas do exterior» e agora são novos líderes como Sadr, que os EUA acusam e se propõem «esmagar».
Nem percebem que quanto mais «inimigos» esmagam mais inimigos arranjam...
Também foi assim no Vietname. Até à derrota final.


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