Um Abril não desejado

Jorge Cordeiro
Incomodado com a data e o que ela representa o governo decidiu assinalar os 30 anos da Revolução de Abril à sua maneira. Não pelo que ela constitui mas pelo que gostaria que tivesse sido. Há muito, tanto quantos os anos que a revolução tem, que se sabia que a direita convive mal com a data. Por eles o 25 de Abril não se teria feito. Por não carecer de demonstração bem se poderia prescindir que o afirmassem. Mas é sempre útil serem os próprios a recordá-lo. Para esclarecimento geral e atenção de alguns distraídos. Apesar do óbvio, três breves anotações.
A primeira, para sublinhar que por mais que a direita mal conviva com isso, o 25 de Abril constituiu um acto e um processo revolucionário, uma ruptura com um regime e com o sistema que lhe dava suporte, um momento de profundas transformações económicas e sociais em si mesmas condição dessa ruptura. Opor á ideia de revolução o conceito de evolução, é olhar para o efeito negando a sua causa. Nenhum processo é tão denso em termos de evolução social quanto o revolucionário. Pelo que não só a evolução que o país conheceu é inseparável da revolução de Abril como a ofensiva contra as conquistas que lhe estão associadas se traduz, como todos os dias se vê, em regressão social e democrática.
A segunda, para fazer notar que pouco há capaz de causar surpresa na posição de quem, se sentindo herdeiro legítimo da apelidada «ala liberal» do anterior regime, desejaria ter preferido para o nosso país um daqueles processos que, conduzido pelos interesses do grande capital e mantendo intacto os seus interesses, pudesse dar à luz uma daquelas chamadas democracias formais, que fazem o gáudio dos que à sua conta perpetuam a exploração e as desigualdades e que na melhor ordem mantêm intactas a ordem dominante das coisas. Pelo que se não estranhe que a política em curso corresponda na prática à ambicionada liquidação de tudo o que de mais progressista e democrático Abril significou, com o património de transformações, conquistas e direitos sociais que por vontade de quem nos governa teria desejado poder evitar e que há muito ambiciona destruir.
Uma terceira, para alertar que não chega erguer a voz contra esta arrogância quando em simultâneo se teima em subestimar a direita e em não identificar o que de mais perigoso a ofensiva em curso representa para o regime democrático. Há que fazer corresponder ás indignadas palavras de alguns dirigentes do PS, as atitudes consequentes. E sobretudo meditar sobre o significado de ainda há um ano se terem associado à aprovação da leis dos partidos que constituem no plano da democracia política expressão da ofensiva geral contra o regime, a democracia e as liberdades. Para que se não acuse alguns, justamente, de pretenderem um ajuste de contas depois de lhe terem facultado a máquina de calcular.


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