Dois casos para meditar

Anabela Fino
A morte de Alija Izetbegovic, a quem chegaram a chamar «o herói de Sarajevo», suscitou uma tal onda de elogios a nível internacional que parecem não restar dúvidas de que o homem que liderou os muçulmanos da Bósnia numa guerra fratricida passará à história como um campeão da democracia.
O facto de Izetbegovic afirmar ser um «dever» a defesa dos «interesses do povo muçulmano bósnio antes de tudo» não perturbou chefes de Estado e de governo nem os analistas de serviço. Como não causou qualquer reflexão o facto, reconhecido, de Alija ter recebido o apoio de mercenários mujaedines e de diversos países árabes para a formação da sua Bósnia expurgada de sérvios e croatas.
Na verdade, não é de estranhar. A criação de um Estado muçulmano no coração da Europa só foi possível com a intervenção no terreno das forças da NATO e a benção dos EUA, que acusando os sérvios de estarem a levar a cabo uma limpeza étnica contribuíram activamente para a destruição das mais multiétnica das repúblicas jugoslavas. Foi o princípio do fim da Jugoslávia e o começo da proliferação no continente europeu de mini-países que são hoje o paraíso de todas as mafias.
Por uma daquelas coincidências que por vezes ocorrem, quase ao mesmo tempo que tomava conhecimento dos rasgados elogios fúnebres ao «democrata» Izetbegovic chegou-me às mãos uma notícia de uma outra novel democracia, a República Checa. O caso reporta-se a finais de Setembro último e diz respeito ao julgamento, em Praga, do jornalista David Pecha.
O jovem, de 24 anos, chefe de redacção do periódico «La Antorcha», foi acusado de ter escrito que para resolver o problema do desemprego no seu país era necessário avançar para a revolução comunista. À luz do direito checo o delito é tipificado como de «incentivo ao ódio de classe», passível de pena de prisão até oito anos.
Não consta que este «perigo para a paz social» na República Checa tenha sido alvo de campanhas de solidariedade ou que a democracia checa tenha sido sequer beliscada pelo que em qualquer outro país seria considerado um atentado à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão. Pelo contrário, a segunda classificação mundial da liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) coloca o país em 13.º lugar, bem à frente de países como a França, o Reino Unido ou mesmo Portugal.
Vale a pena meditar nestes dois casos. Afinal, de que se fala quando se fala de democracia?


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