Aborto – Cinco anos após um referendo

Fernanda Mateus (Membro da Comissão Política do CC do PCP)
No próximo dia 28 de Junho assinala-se a passagem da realização do Referendo sobre o aborto em Portugal.

Os movimentos «pró-vida» sentem-se apoiados pelo Governo

Referendo que teve lugar na sequência de um acordo entre o PS e o PSD e em que o PS, como cedência, trocou o seu projecto-lei de despenalização do aborto, aprovado na generalidade, a 4 de Fevereiro de 1998, na Assembleia da República. Referendo que deu uma vitória tangencial ao «Não» por 50 mil votos, mas cujo resultado não teve carácter vinculativo já que contou com a participação de apenas 31,9% dos eleitores(as).
No plano legislativo, este resultado constituiu uma derrota na luta pela dignificação das mulheres, na protecção da sua saúde e na defesa dos seus direitos e veio dar um novo alento aos que sempre se empenharam em travar qualquer desfecho positivo e que nunca aceitaram a decisão, finalmente tomada, de aprovação em 98, por uma maioria de deputados (socialistas, comunistas, Verdes e três deputados do PSD), de uma lei de despenalização do aborto, a pedido da mulher, até às 10 semanas. É nesta sequência que, após as eleições legislativas de 2002, a maioria de direita PSD/CDS-PP assumiu o compromisso, no Acordo de Governo, de se abster de apresentar qualquer iniciativa parlamentar que viesse a colidir com a actividade do Governo e em defesa institucional da validade dos resultados do Referendo.
Esta decisão política tem consequências nefastas, ao fomentar novos e mais duradouros obstáculos ao êxito da luta pela despenalização do aborto em Portugal e ao pretender introduzir subversões e retrocessos nos conteúdos orientadores das políticas relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, designadamente em matérias como a educação sexual e o planeamento familiar, que as leis portuguesas consagram, bem como retrocessos nas garantias de uma oferta pública de qualidade no que se refere à saúde reprodutiva, nas suas diversas componentes.
Nesta linha, vários instrumentos da acção do Governo omitem quaisquer referências à educação sexual, ao planeamento familiar e à interrupção voluntária da gravidez, não se coibindo, entretanto, de manifestar apoios a um conjunto de estruturas directamente ligadas e/ou dependentes dos ditos movimentos pró-vida.
As declarações do Ministro Bagão Félix, afirmando publicamente que a penalização do aborto se deve manter, devendo as mulheres «expiar a sua própria dificuldade moral trabalhando (...) em instituições de solidariedade social, a título pedagógico e não a título de castigo», numa linha de estigmatização social das mulheres, bem como as declarações da Secretária de Estado da Educação:«A religião católica é a religião oficial do nosso País» e «os professores não têm ética para a educação sexual», dão bem o mote na tentativa de transpor para o Estado concepções e valores – respeitáveis no plano individual, inaceitáveis como concepção do Estado Português.
Por seu lado, a hierarquia da Igreja e os ditos movimentos pró- vida tentam ganhar nova visibilidade e aproveitar o que consideram ser um momento privilegiado de apoio, por parte da actual maioria PSD/CDS-PP, às suas posições nestas matérias. Como mero exemplo, referir que a sua actividade tem sido objecto de intensa propaganda (publicidade televisiva, cartazes no Metro, etc.) surgindo, nos últimos tempos e com frequência, artigos de página inteira em jornais e revistas sobre estas instituições.

Uma grande causa civilizacional

A luta pela despenalização do aborto em Portugal soma, no seu longo percurso, várias oportunidades perdidas, no plano legislativo, de intervir a favor da despenalização do aborto – 1982, 1984, 1994, 1997, 1998 –, como se confronta com novos e mais perigosos obstáculos que não podem ser subestimados por aqueles(as) que estão verdadeiramente empenhados nesta causa.
Quem agora decide assumir a inevitabilidade da realização de um novo Referendo está no seu legítimo direito. Mas o PCP considera que orientações centradas na prioridade de realização de um novo Referendo não serve a causa de despenalização do aborto em Portugal.
O PCP continua a sustentar que a Assembleia da República deverá assumir a responsabilidade de vir a votar favoravelmente uma lei de despenalização do aborto em Portugal. É este o significado da apresentação do projecto-lei 1/IX, que prevê a despenalização do aborto até às 12 semanas, a pedido da mulher, para salvaguardar uma maternidade responsável e consciente.
O PCP não aceita que esta sua posição seja pretexto para «cruzadas» que pretendam diminuir o seu papel nesta luta – no passado, no presente e no futuro, e alimentem, de forma explícita ou implícita, posições de desvalorização do seu empenho num forte desenvolvimento de acções, de iniciativas e de um vasto movimento de opinião que congreguem todas as forças, energias e vontades dos(as) que em Portugal não desistem de sustentar com firmeza, esperança e confiança esta grande causa civilizacional.
Quem optar por alimentar o caminho da «cruzada» está a fomentar a divisão no campo democrático e progressista e a contribuir para aumentar os obstáculos ao êxito desta luta. Tais actos e atitudes ficarão para quem os praticar. As mulheres portuguesas poderão continuar a contar, hoje como sempre, com uma atitude responsável do PCP.


Mais artigos de: Opinião

Directo ao assunto

Não fosse poder-se criar a sensação de que pensamos que nunca há nada de novo sobre a Terra, apeteceria dizer que, em tempos de violenta ofensiva da política de direita, era fatal como o destino que regressasse em cheio a «cassete» contra a Constituição da República que, pela pena do director do «Público» e de vários...

Cabalística

Na origem hebraica a cabala era o sistema tradicional de interpretação das revelações bíblicas, mas o percurso histórico e a perseguição católica fundamentalista deram-lhe o significado de ciência e prática do oculto.Na vida política do país abundam as cabalas que, secretas por definição, são às vezes conjecturadas, no...

A farsa

As mentiras belicistas anglo-americanas caem cada vez mais no descrédito. O semanário britânico The Observer (15.6.03) anuncia que «uma investigação oficial britânica sobre dois atrelados encontrados no norte do Iraque concluiu que não se tratava de laboratórios de guerra bacteriológica, como haviam afirmado Tony Blair e...

A expedição

Soprando pundonor bélico e ansiedade serviçal, o Primeiro-ministro Durão Barroso ofereceu aos EUA de George W. Bush forças portuguesas para «colaborarem» na «reconstrução do Iraque».Os EUA encolheram os ombros e Durão Barroso apontou para a GNR, após uma desalentada olhadela pelos três ramos das Forças Armadas...

Pacto social tirânico

«Cada um de nós põe em comum a sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direcção da vontade geral; e recebemos colectivamente cada membro como parte indiscutível do todo». A quem considere estas palavras como de alta subversão política recordo que constam do «Contrato Social» de J. J. Rousseau, publicado há mais de...