O que agora alguns vão descobrindo

Agostinho Lopes (Membro da Comissão Política)

São notáveis as reflexões e exclamações de alguns que agora descobrem a força e o poder conquistados pelo grande capital! E judiciosas as críticas sobre as propostas que pretendem eliminar qualquer intervenção do poder político na «gestão» da economia, isto é, da completa expulsão da decisão democrática dos cidadãos sobre a estrutura, funcionamento e objectivos da economia nacional!

Diz Alfredo Barroso (Expresso, de 21 de Janeiro), sob o sugestivo título «A tentação oligárquica», «São cada vez mais os ricos e poderosos, as elites de gestores, economistas e empresários que condicionam a escolha dos candidatos ao poder e determinam as políticas postas em prática pelos Governos.» E depois de citar Emmanuel Todd e Umberto Eco sobre «o processo de «decadência oligárquica para o qual as democracias estão a resvalar», termina assim: «Mais preocupante ainda é a escandalosa partilha de pastas ministeriais entre "ex-gestores" de grupos privados. Os tais que – como diria Aristóteles – "não sendo suficientemente poderosos para governar sem leis, fazem passar como leis as preferências que têm". Denunciar esta promiscuidade entre o poder político e o poder económico e financeiro é uma das formas de combater a tentação oligárquica. E de tentar travar a degenerescência da democracia.» Artigo que tem por leit motiv a peregrina proposta do professor Cavaco Silva sobre o controlo tecnocrático do défice – que passaria a ser fixado por uma «comissão de economistas» considerada pelo autor como uma «tendência cada vez mais acentuada em vários regimes democráticos, de progressivo deslizamento para a oligarquia».

Diz João Cravinho (Diário de Notícias de 25 de Janeiro), menos incisivo, ao avaliar proposta de Cavaco Silva de «retirar ao poder político a competência para fixar o valor anual do saldo do orçamento e entregá-lo a uma Comissão de Especialistas de reputação indiscutível, gozando de total independência, à qual competiria também acompanhar a evolução da grandeza do saldo e garantir a sua veracidade»: «Só o pensamento único poderá ver a decisão sobre o défice como exclusivamente técnica e de solução única. Pelo contrário, trata-se de um problema político por excelência que tem de ser rigorosamente avaliado e resolvido na esfera das instituições políticas.»


Quem são os responsáveis
pela recuperação oligárquica?


E se são sábias e judiciosas aquelas reflexões, e outras que não citamos por economia de texto, não bastam. Não chega denunciar a promiscuidade entre o poder político e o poder económico. É necessário explicar como se chegou a essa «promiscuidade». É necessário perceber porquê Cavaco Silva se sente hoje à vontade para formular semelhante proposta. E por muitos motivos. Um dos quais, porque quem as profere teve e tem posições destacadas na área ideológica e partidária PS que, exercendo o poder político (Governo, Assembleia da República, Presidência da República), assumiu responsabilidades directas pela evolução da estrutura socioeconómica portuguesa, no sentido de dominância recuperada, e hoje avassaladora, dos principais Grupos Económicos, na vida económica, social e política do País. É que depois do 25 de Abril isto nem sempre foi assim!

Quem, de braço dado com a direita, animou e concretizou um processo de recuperação capitalista acelerada, de privatizações de todos os sectores financeiros (à excepção, ainda, da Caixa Geral de Depósitos), de outros sectores e empresas estratégicos, apostando numa política económica onde a reconstituição dos Grupos Económicos monopolistas (destruídos por Abril) era o alfa e o omega da estratégia para desenvolver Portugal, para alterar o perfil produtivo e fazer crescer a eficiência e a produtividade nacionais (o que, como se sabe, não aconteceu), tem pouca autoridade, pelo menos sem um sério acto de contrição, para, agora, vir lamentar o posso, quero e mando dos senhores do dinheiro no País. Não caracterizou, em 1995, o ex-primeiro-ministro A. Guterres, esses Grupos como «os elementos racionalizadores das transformações económicas do País, da modernização e de um novo modelo de especialização»?!

Quem, de braço dado com a direita, animou o processo de liberalização do espaço mediático, de privatização de empresas públicas, favorecendo a concentração oligopolista dos grandes e principais meios de comunicação social na mão (ou com significativas ligações) daqueles grupos económicos, pode agora vir protestar contra a dificuldade da «liberdade de expressão e de pressão», resistir à «berlusconização da sociedade e do Estado»?!

Quem apoiou o Tratado de Maastricht, defendeu o caminho da convergência nominal para a moeda única e a completa alienação do poder político soberano de cada Estado de gestão da sua política monetária, a favor de um Banco Central Europeu, expressa e explicitamente definido nos Tratados e consagrando nos seus Estatutos a sua independência face ao poder político(1). Quem aprovou e defendeu, de braço dado com a direita (e defende ainda), o Pacto de Estabilidade que fixou, não se sabe com base em que estudos científicos ou académicos, que o défice orçamental bom era zero, independentemente do grau de desenvolvimento, problemas e necessidades de cada país concreto. Quem aceitou que o grau de liberdade das «instituições políticas» para fixar o rácio do défice orçamental/PIB seja o intervalo [0; 3] com tendência para zero ou valores negativos, estará assim tão longe de Cavaco Silva e da sua proposta de «retirar ao poder político a competência para fixar o valor anual do saldo do orçamento e entregá-lo a uma Comissão de Especialistas?


Uma velha tese do PCP


Relembra-se, mais uma vez, uma velha tese do PCP. A democracia convive mal com o poder do grande capital. Antes e durante a Revolução de Abril dissemos que não haveria democracia plena sem a liquidação do poder dos monopólios. Previmos e prevenimos que a reconstituição dos grupos do grande capital arrastaria, inevitavelmente, choques, desfigurações e golpes no regime democrático.

E uma pergunta se impõe: o afã convergente do PS e da direita em reformar o sistema político destina-se a responder à «degenerescência» da democracia pelo poder antidemocrático do capital? É para combater o esvaziamento do poder do povo a favor do poder dos ricos, da oligarquia? Ou é para adequar o regime constitucional democrático e de Abril ao poder real da oligarquia? Para garantir à oligarquia a continuidade da alternância sem alternativas reais, com um «seguro» institucional contra sobressaltos do eleitorado?

(1) O que se agravará se o novo projecto de governo apresentado pelo BCE face ao alargamento for aprovado, laminando ainda mais o já reduzido poder dos pequenos e médios países, a favor e consolidando explicitamente o comando do BCE pelos Estados com as cinco economias mais poderosas da zona euro – Alemanha, França, Itália, Espanha e Holanda.



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