Quem nos livra?

Henrique Custódio

Falando para a BBC, o ministro britânico da Defesa, Geoff Hoon, afirmou esta semana que, no caso de um eventual conflito com o Iraque, a utilização de bombas nucleares poderá ser feita numa «situação extrema de auto-defesa».

Para que não restassem dúvidas, fez mesmo questão de se dirigir directamente ao líder iraquiano, enviando-lhe o seguinte recado: «Sempre deixámos claro que nos reservamos o direito de utilizar armas nucleares em condições extremas de autodefesa. Saddam Hussein pode estar absolutamente confiante de que nas condições certas as utilizaremos.».

Pouco importa que Saddam Hussein esteja, ou não, «confiante» na palavra do ministro britânico – a farronca de ambos equivale-se e se o que o governante britânico diz pode parecer prosápia, tudo o que o ditador de Bagdade afirme é-o, de certeza. Tomara Saddam aguentar-se nas canetas mesmo sem ninguém a empurrá-lo, como de resto toda a gente está fartíssima de saber, a começar pelos serviços secretos dos EUA e com relevo para a CIA, que até já confessou sob anonimato não ter o regime iraquiano, actualmente, qualquer capacidade militar de relevo.

Importante, aqui, é a ousadia do ministro britânico de anunciar a disposição do seu governo em utilizar armas atómicas. Trata-se de uma afirmação de extrema gravidade, e nem o facto de surgir na esteira de afirmação semelhante também já produzida pela administração Bush, nos EUA, lhe retira peso.

Durante a chamada guerra-fria – que durou quase meio século – a política de dissuasão militar dos dois blocos assentou no também chamado «equilíbrio do terror», ou seja, uma paridade de armamento nuclear tão garantidamente destruidor de todo o planeta, que ambos os lados acordaram num compromisso que era uma certeza: nenhum deles, em nenhuma circunstância, jamais utilizaria armamento nuclear. Isto, simplesmente, porque se alguém o fizesse ditaria a destruição de todos e da própria vida no planeta.

A União Soviética e o campo socialista ruíram, o capitalismo galopou, triunfante, pelo mundo e os EUA emergiram como única grande potência, agora sob uma administração de extrema-direita que, perigosamente, se propôs dominar o mundo inteiro com actuações imperiais.

Esta guerra contra o Iraque – cínica e friamente decidida há muitos meses – é a expressão mais recente desse projecto dos EUA.

Todavia, o armamento nuclear suficiente para destruir dezenas de vezes todo o planeta continua aí, com a agravante de se encontrar em muito mais mãos, e todas menos, muito menos seguras.

Admitir a utilização de bombas atómicas neste contexto é, só por si, não apenas uma inqualificável irresponsabilidade como um perigosíssimo passo, dos que nunca deveriam ser dados seja por quem for, incluindo potências nuclearmente insignificantes, como é o caso desta Grã-Bretanha.

Como é, a partir de agora? Todas as potências nucleares - da velha Albion ao Paquistão, de Israel à Índia, da França aos EUA (para só falarmos dos casos mais conhecidos) - podem admitir «situações extremas de autodefesa» e, com isso, desencadear o holocausto?

Quem nos livra da loucura que parece varrer o mundo?



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