Aos que deram tudo

Anabela Fino

«Foi a descoberta mais importante de toda a sua vida. Sabia ler. Possuía o antídoto contra a venenosa peçonha da velhice». As palavras de Luis Sepúlveda, o escritor, jornalista e activista político chileno que há dias nos deixou, vítima de Covid-19, dão-nos um vislumbre do que significava escrever – a sua forma de contar o mundo – para quem cedo descobriu que a América Latina limita ao Norte com o ódio e não tem mais pontos cardeais.

Membro activo da Unidade Popular chilena nos anos 70, Sepúlveda estava no Palácio de La Moneda a fazer guarda ao Presidente Allende aquando do golpe militar fascista liderado por Pinochet, com o apoio dos EUA, a 11 de Setembro de 1973. Como escreveria 30 anos depois, no seu Memorial dos anos felizes, «Cada uma e cada um tem na sua memória um álbum particular de recordações felizes daqueles dias em que demos tudo, e parecia-nos que dávamos muito pouco, porque tínhamos gravado na pele os versos do poeta cubano Fayad Jamis: “por esta revolução haverá que dar tudo, haverá que dar tudo, e nunca será o suficiente”».

Um entre tantos que lutaram para fazer do Chile um país justo, feliz e digno, o escritor para quem seria insuportável ser imortal orgulhava-se de fazer parte dos que «não renunciaram à sua dignidade, dos que resistiram nos interrogatórios, dos que morreram no exílio, dos que regressaram para lutar contra a ditadura, dos que ainda assim sonham e se organizam, dos que não participam na farsa pseudodemocrática dos administradores do legado da ditadura».

São homens como estes que guardamos na memória, gratos por nos lembrarem que só voa quem se atreve a fazê-lo. Com eles, na despedida, «bebamos com orgulho o vinho digno das mulheres e dos homens que deram tudo, que deram tudo pensando que não era o suficiente».




Mais artigos de: Opinião

Sem máscara

A situação decorrente do enorme impacto da COVID-19 na situação internacional veio demonstrar que as grandes potências imperialistas, e em particular o imperialismo norte-americano, não têm quaisquer escrúpulos em prosseguir, e até intensificar, a sua criminosa acção de desestabilização, confronto e agressão contra...

Não acabou

Pela primeira vez desde há dez (!) anos, os trabalhadores da função pública viram os seus salários acrescidos de um valor a que se chamou «aumento». O valor que demorou uma década a germinar é um acréscimo de 0,3% para a generalidade dos trabalhadores e de 10 euros para os vencimentos inferiores a 700 euros, com...

Por natureza, desumano e cruel

«Todas as crianças, de todas as idades e em todos os países estão a ser atingidas pelos efeitos sócio económicos da pandemia sendo que os efeitos da crise podem vir a ter impactos de longa duração sobretudo nos países mais pobres onde existe mais vulnerabilidade», refere um documento da ONU divulgado na passada...

A liberdade e o cabrito da Páscoa

A campanha desencadeada contra o 25 de Abril assumiu contornos grotescos, que só se podem compreender, quer pelo ódio de classe que as suas conquistas e valores suscitam nas classes dominantes, quer pela situação muito complexa a que o bombardeamento ideológico, o medo e o confinamento, sujeitam as classes dominadas....

Distanciamentos

Conhecemos em tempo não distante e no debate de temas distintos em que o binómio «individual-social» foi suscitado, o recurso na falta de melhor argumento ao imbatível «em mim mando eu».