Distanciamentos
Conhecemos em tempo não distante e no debate de temas distintos em que o binómio «individual-social» foi suscitado, o recurso na falta de melhor argumento ao imbatível «em mim mando eu».
A imensa maioria dos que trabalham não vai ficar bem
«E com que arte magnífica sabe esta gente “intelectual” aproveitar a arma de semear o pânico! Pois isto tornou-se uma verdadeira arma na luta de classe da burguesia contra o proletariado.»
Não será o momento para a abordagem mais densa sobre as motivações não inocentes do ponto de vista de classe que a exacerbação desse individualismo pretende fixar e o que nela se esconde de difusão de concepções ideológicas que carreiam no interesse do grande capital.
Entretanto, razões de premente actualidade convocam, ainda que insuficientemente, a não fugir à questão. O que hoje se desenvolve a pretexto do surto epidémico, sem qualquer desvalorização do que ele inequivocamente significa e exige de combate e prevenção, pretende inaugurar uma nova fase mais intensa e mais perigosa de difusão dessas ideias. Em nome do necessário distanciamento e das medidas de prudência de cada um consigo próprio e para com os outros, o que aí está à escala de massas é a profusão a partir de agigantamento do medo, para lá do racional, da criação de um clima geral de intimidação social dirigido para e suportado na exacerbação do individual.
Muito para lá dos limites que a prevenção justamente recomenda, aí temos a idolatração do isolamento social e da atomização da vida social e laboral. Já não apenas como resposta no imediato, mas com a ambição de as perpetuar a partir de um registo de atemorização que se alimenta com parcelas de verdade e uma imensa especulação. Não se ignore a relação entre isolamento e permeabilidade ao medo e a margem que este dá ao poder dominante para formatar a consciência de cada um.
Para lá do individual
Sabemos que para mudar a sociedade o individual não é suficiente. O poder associado ao capital monopolista também sabe da importância, para a concretização dos seus objectivos de exploração, de abstrair o homem da esfera do social para o centrar no estrito círculo do individual. Sabe bem quanto a luta por mudanças políticas e sociais, ou até pela defesa mais imediata de cada direito, pode ser sabotada partir da ideia de que a resposta se resume tão só a alterar atitudes pessoais de alguém entregue a si próprio.
Assim como nós sabemos, pela experiência histórica e a vida concreta, que não há realização isolada, que o indivíduo não se basta a si próprio, que não há «indivíduo» fora de um todo, fora das relações sociais e da interacção colectiva.
A epidemia pôs a nu a natureza do capitalismo e a desvalorização da vida humana que lhe é inerente. Em contraste com outros países em que é afirmada a opção por uma sociedade socialista, e onde o objectivo prioritário é o de salvar vidas, nos centros capitalistas afere-se o valor da vida em função do seu potencial para a criação do produto e descartam-se vidas em função da idade e de outros índices de saúde física ou mental. A epidemia não fez desaparecer as contradições de classe e a luta delas resultantes.
Pelo contrário, agudizá-las-á quer no plano mais amplo das concepções de vida social e de sociedade, quer no plano concreto das políticas para dar resposta a problemas do sistema capitalista e que o impacto da epidemia ampliaram significativamente. A difusão de ideias como a «vamos todos ficar bem» quando centenas de milhares perderam salários e emprego, ou «vamos todos ser selecção nacional» são parte, mesmo se replicados com as melhores das intenções, da preparação do terreno para fazer recair, anda mais, sobre os ombros dos trabalhadores e do povo os custos do surto epidémico.
Porque é uma evidência que a imensa maioria dos que trabalham não vai ficar bem, mesmo que uma pequena minoria venha ainda a ficar melhor e mais opulenta. Mais uma vez será na luta dos trabalhadores e dos povos que assentará a perspectiva de vencer obstáculos e abrir caminho a uma sociedade mais justa.