Miséria de pensamento

Luís Carapinha

Desorientação, desconcerto, fuga para a frente. Assim se poderia reduzir a reacção de Bruxelas e das principais potências europeias às mudanças adoptadas pela nova administração em Washington relativamente à guerra na Ucrânia e ao relacionamento com Moscovo, naquela que se afigura como uma potencial inflexão de 180 graus da postura dos EUA – que, lembre-se, foram o principal construtor e instigador do conflito. Na véspera da inefável von der Leyen anunciar na cimeira extraordinária da UE de dia 6 o pacote de 800 mil milhões de euros para «rearmar a Europa», o presidente francês, Macron, em comunicação solene ao país, declarou a Rússia uma «ameaça à França e Europa», aventando, pateticamente, aos «aliados» a protecção da força nuclear dissuasora de Paris. Horas depois, mais um balde de água gelada do outro lado do Atlântico. Referindo-se à guerra na Ucrânia, o secretário de estado Marco Rubio afirmou que «francamente, é uma guerra por procuração entre potências nucleares», EUA e Rússia. Que Londres e a Comissão Europeia, caixa de ressonância de Berlim e Paris, com o governo fantoche de Zelensky, parecem querer obstinadamente prosseguir até ao último ucraniano.

Depois de todos os desenvolvimentos das últimas semanas, apontando para uma reversão das prioridades da Casa Branca e a secundarização da Europa e da NATO na ambiciosa reorientação em curso da estratégia arrogante do imperialismo norte-americano, a confissão de Rubio deixa desnudada toda a narrativa dominante que serviu de justificação e enquadramento desta guerra odiosa. Até por vir de quem vem, desamparando a vasta corte de reprodutores do pensamento único e formatadores da opinião pública. É a queda aparatosa da torrencial falsa narrativa que desde sempre ignorou as causas concretas da guerra, imediatas e mais profundas, assentes no golpe de estado da Maidan, mas também no golpe de 8 de Dezembro de 1991 que decretou o fim da URSS e abriu portas à terrível depressão no espaço pós-soviético e início da cavalgada para Leste da NATO.

O que está em causa vai muito além da falência do pensamento único. A inflexão ou «mudança de paradigma», ensaiada pelos sectores e agenda que Trump e a sua equipa encarnam, num quadro volátil de crescente turbulência e disputa internas e grande instabilidade internacional, passando pelo reacender de contradições inter-imperialistas no eixo transatlântico (e, já se vê, no seio das potências europeias), constitui um marco a fixar na trajectória histórica de declínio dos EUA e do imperialismo no seu conjunto. Um marco que não pode ser visto de forma separada do complexo processo de rearrumação de forças e da emergência da China com tudo o que isso objectivamente significa de desafio à hegemonia e «excepcionalidade» dos EUA. E que remete, simultaneamente, para os imperativos de colossais problemas económicos da superpotência imperialista.

Com a dívida pública em níveis máximos e o défice orçamental com novo recorde mensal em Fevereiro, somam-se já os avisos de recessão. A manobra das tarifas e sanções arbitrárias e a procura frenética da détente com a Rússia para escalar a confrontação e pressão sobre a China revelam o grau de ansiedade em Washington. Hegseth, actual chefe do Pentágono, arvorava em 2020 a «guerra santa» contra a «China comunista». A reacção à crise do sistema traz-nos o admirável mundo velho em todo o seu esplendor.



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