Cosmética

Gustavo Carneiro

Já vimos este filme vezes sem conta, mas parece que continua a vender bem: pega-se num bandido (um fascista, um terrorista, ou até um vulgar criminoso), lava-se-lhe a cara até ficar bem apresentável e eis um líder que a opinião pública ocidental pode aceitar e até, quem sabe, louvar. Aconteceu com o traficante de órgãos humanos Hacim Thaci, o “Ché Guevara do Kosovo”, e até com o próprio Osama Bin Laden, o “herói anti-soviético” (como lhe chamou o The Independent em 1993) que então se dedicava a obras públicas no Sudão… E é o que por estes dias acontece com Abu Mohammed Al-Jolani, o líder do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), porventura o maior bando armado em actividade na Síria, que seguramente desempenhará um papel relevante no país. Ou, pelo menos, no que restar dele...

Não falamos da real operação de cosmética que o envolveu nos tempos mais recentes: a barba aparada, o cabelo bem cortado e penteado, o discurso estruturado, a farda militar ou até mesmo as calças caqui, deixando para trás os turbantes e as túnicas e, dessa forma, atenuando um ar talvez demasiado árabe e marcadamente islâmico para certos públicos. Preocupa-nos sobretudo outra, e que esta visa sobretudo facilitar: a apresentação de Al-Jolani como um “radical moderado” (Expresso), um “rebelde pragmático” (Jornal de Notícias), que terá deixado para trás anteriores extremismos e estará pronto para – dizem-nos – conduzir a Síria à democracia.

A história real, porém, está longe deste conto de fadas. A HTS tem origem na Frente Al-Nusra (a Al-Qaeda na Síria), responsável por bárbaros crimes e defensora da sharia e de um “califado”. Em 2013, foi o próprio Al-Jolani a jurar lealdade ao sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri. No Iraque, como depois na Síria, combateu nas fileiras da Al-Qaeda e do que seria mais tarde o Estado Islâmico.

O anunciado “corte de relações” com a Al-Qaeda, a mudança de nome da organização e as promessas de que não atacará as minorias são tão cosmética quanto a visita ao barbeiro. Mais reveladora é a sua passividade face aos bombardeamentos massivos de Israel na Síria e à ocupação de mais território para além do que já ocupa desde 1967 nos Montes Golã – mas acerca disto pouco se falou na comunicação social dominante e muito menos se procurou entender. Por explicar ficam também alguns pontos da sua biografia, desde logo a saída da prisão norte-americana no Iraque, em 2011, mesmo a tempo de rumar à Síria com homens e armas…

Mas nada disto interessa para os média dominantes: a “nossa democracia” venceu e a Síria desaparecerá dos alinhamentos noticiosos à medida que se agravar o caos e a violência sectária e o que antes fora um país deixar de o ser. Afinal, aconteceu o mesmo no Iraque e na Líbia, “democratizados” pelos EUA e pela NATO.



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