Um País a duas velocidades

João Frazão (Membro da Comissão Política)

A grande agri­cul­tura con­vive com o des­prezo a que são vo­tados os pe­quenos e mé­dios agri­cul­tores

Por­tugal vai ser, se­gundo rezam as no­tí­cias mais re­centes, palco para a maior “fá­brica de ce­nouras bebés” da União Eu­ro­peia, a ter­ceira maior a nível mun­dial.

Não se trata, ainda que o nome que lhe é atri­buído pela co­mu­ni­cação so­cial assim o in­dique, apenas de uma uni­dade in­dus­trial de em­ba­la­mento ou trans­for­mação desse pro­duto ali­mentar. Es­tamos a falar de uma ex­plo­ração agrí­cola que ocu­pará 50 hec­tares no Ri­ba­tejo, com um in­ves­ti­mento que se anuncia poder chegar aos 85 mi­lhões de euros, para pro­duzir “snacks”, 52 se­manas por ano.

Para lá das pro­messas en­voltas em nú­meros mi­ra­bo­lantes, que estes pro­jectos sempre en­volvem (re­giste-se que este, em con­creto, que já anun­ciou que iriam pro­duzir ce­nouras em 600 hec­tares, agora re­fere o ob­jec­tivo de chegar aos 1000 postos de tra­balho), ele re­vela uma re­a­li­dade e uma opção, que está pre­sente na po­lí­tica agrí­cola na­ci­onal, que leva estas ex­pe­ri­ên­cias ao colo (cá es­ta­remos daqui a uns anos para lhe fazer o ba­lanço) em de­tri­mento dos pe­quenos e mé­dios pro­du­tores que ocupam o ter­ri­tório e cons­ti­tuem o grosso da co­luna da agri­cul­tura na­ci­onal.

O grupo eco­nó­mico que está por de­trás desta ope­ração é uma so­ci­e­dade lu­xem­bur­guesa que tem, se­gundo as in­for­ma­ções cons­tantes no pro­to­colo em que se previa apoios do Es­tado, téc­nicos de uma em­presa da Ca­li­fórnia que se de­di­cava a este tipo de ex­plo­ração.

Um tipo de agri­cul­tura ca­pi­ta­lista e ex­trac­ti­vista, aca­ri­nhada pelos po­deres pú­blicos (a Câ­mara Mu­ni­cipal res­pec­tiva gaba-se de, em 45 dias, ter tra­tado de re­mover todos os obs­tá­culos para fa­ci­litar o pro­jecto), as­sente na con­cen­tração da pro­pri­e­dade, da pro­dução e da ri­queza, e onde avultam exem­plos como a Je­ró­nimo Mar­tins Ali­mentar, que em 2022 pro­duziu 85 mi­lhões de li­tros de leite, 10 mil bo­vinos de carne ou 35 mil ovinos, de acordo com as in­di­ca­ções da pró­pria em­presa, tendo ao leme um ex-mi­nistro do sector; a So­vena, que tem o maior olival do mundo; a Wi­neS­tone, do Grupo José de Mello, que pre­tende estar no pódio das em­presas de vinho em Por­tugal; do Grupo Amorim, que gere áreas de flo­resta e mon­tado de sobro su­pe­ri­ores a 12 mil hec­tares; ou das in­dús­trias da ce­lu­lose, que gerem 197 mil hec­tares de eu­ca­liptal.

Uma agri­cul­tura nas mãos de grandes grupos eco­nó­micos e fi­nan­ceiros, em parte já de­tidos por fundos sem rosto, que abo­ca­nham a parte de leão dos fundos co­mu­ni­tá­rios, os tais 80% que ficam nas mãos de 8% de be­ne­fi­ciá­rios.

 

Con­trastes

Uma re­a­li­dade de su­cessos para uns poucos que con­trasta, quer com os preços que os con­su­mi­dores pas­saram a ter de pagar, por exemplo, pelo azeite, que o mer­cado devia obrigar a ficar mais ba­rato face ao ex­po­nen­cial au­mento da oferta, quer com as di­fi­cul­dades com que mi­lhares de pe­quenos e mé­dios pro­du­tores so­bre­vivem, face aos custos dos fac­tores de pro­dução, ou à in­ca­pa­ci­dade de es­coar as suas pro­du­ções a preços justos.

Uma de­ter­mi­nação de re­cons­ti­tuição pau­la­tina de grandes grupos eco­nó­micos, que exibem os seus feitos e nú­meros mi­li­o­ná­rios, que con­trastam com o pe­queno pro­dutor de bo­vinos, que perde 30 ou 40% do ren­di­mento se lhe morrem três vi­telos por causa da seca. Com o pro­dutor de maças na Beira Alta, que não pode fazer as ope­ra­ções de ma­nejo que elas pre­cisam, porque não tem a quem as vender e en­tregá-las a 100 km de dis­tância não com­pensa. Com o pro­dutor de uvas, que este ano teve de as deixar nas vi­deiras, porque não tem se­quer a quem as en­tregar. Ou com o pro­dutor de ba­tata que, não obs­tante este ser o pior ano de sempre em área se­meada, vai re­ceber por elas apenas um dé­cimo do que qual­quer um de nós tem de pagar no su­per­mer­cado.

Um ca­minho que tem con­sequên­cias dra­má­ticas porque ex­pulsa mi­lhares de jo­vens que tentam a sua sorte na agri­cul­tura e não en­con­tram terra dis­po­nível, porque os preços en­traram numa es­piral es­pe­cu­la­tiva, e porque leva ao aban­dono de ex­plo­ra­ções e ao con­se­quente des­po­vo­a­mento nas zonas mais des­fa­vo­re­cidas.

Um País, por­tanto, a duas ve­lo­ci­dades, onde a pro­dução su­per­mo­derna, da agri­cul­tura de pre­cisão, com má­quinas da úl­tima ge­ração, as­sente em larga me­dida na ex­plo­ração de mão-de-obra imi­grante sem di­reitos, apoiada for­te­mente por di­nheiros pú­blicos, vol­tada para a ex­por­tação, pro­mo­vida amiúde pela vi­sita e o es­tí­mulo dos go­ver­nantes ao ser­viço do grande ca­pital, con­vive com o des­prezo a que são vo­tados mais de 200 mil pe­quenos e mé­dios agri­cul­tores, cuja com­pe­ti­ti­vi­dade se mede apenas pela ca­pa­ci­dade e per­sis­tência que têm para con­ti­nu­arem a pro­duzir para ali­mentar o nosso povo.



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