Dois séculos

Filipe Diniz

Uma em­presa in­diana, a Ta­taS­teel, «re­con­verte» uma ins­ta­lação si­de­rúr­gica em Port Talbot (País de Gales). Estão em causa mi­lhares de tra­ba­lha­dores. O se­cre­tário-geral do sin­di­cato UNITE, Sharon Graham, de­nuncia: «A Tata optou ci­ni­ca­mente por en­cerrar os seus altos-fornos e re­duzir o nú­mero de postos de tra­balho qua­li­fi­cados para pro­mover os seus pró­prios in­te­resses à custa dos tra­ba­lha­dores, da in­dús­tria e da eco­nomia do Reino Unido.[…] A Tata tem es­tado a lu­crar com o aço im­por­tado para o Reino Unido a partir das suas fá­bricas na Índia e na UE. A Tata já está a im­portar vo­lumes cres­centes de aço in­diano para o Reino Unido.»

A em­presa ne­go­ceia um acordo com o go­verno de Sunak: 500 mi­lhões em di­nheiros pú­blicos para a «re­con­versão». A ar­gu­men­tação é ver­da­dei­ra­mente pre­vi­sível: «o pro­jecto re­for­çará a se­gu­rança no Reino Unido re­la­ti­va­mente ao aço e cons­ti­tuirá o pri­meiro grande passo para a des­car­bo­ni­zação da in­dús­tria si­de­rúr­gica local», etc., etc.

Veja-se Marx nos textos de 1853 sobre a ocu­pação bri­tâ­nica da Índia: o co­lo­ni­zador cumpre a «dupla missão» de ani­quilar a velha so­ci­e­dade asiá­tica e es­ta­be­lecer os fun­da­mentos ma­te­riais da so­ci­e­dade oci­dental na Ásia. Li­quida a pro­dução tra­di­ci­onal: «Foi o in­vasor bri­tâ­nico que que­brou o tear ma­nual e des­truiu a roda de fiar. A In­gla­terra co­meçou por privar os al­go­dões in­di­anos do mer­cado eu­ropeu; in­tro­duziu de­pois o fio no In­dostão e, no fim, inundou de al­go­dões a pró­pria terra natal do al­godão». «A rede de ca­mi­nhos-de-ferro, meios de ir­ri­gação e co­mu­ni­cação in­terna» in­tro­du­zirão a «in­dús­tria mo­derna». Es­ta­be­lecem as «pre­missas ma­te­riais» para «o de­sen­vol­vi­mento dos po­deres pro­du­tivos».

Dois sé­culos de­pois, os que viram o seu al­godão ar­te­sanal li­qui­dado no séc XIX inundam hoje com o aço que pro­duzem o mer­cado do ex-co­lo­ni­zador. Port Talbot será talvez a imagem de um cír­culo que se fecha. Mas fecha-se, ainda, no beco sem saída do ca­pi­ta­lismo.

 



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