Cimeira da pax

Anabela Fino

«Zelensky é uma espécie de Astérix dos tempos modernos», diz Nuno Rogeiro, comentador oficial da SIC, que viu no conclave deste fim-de-semana num resort de luxo, na Suíça, «uma grande vitória para a Ucrânia». Seguindo o paralelismo com a banda desenhada, presume-se que a poção mágica de Zelensky, guardada na banca e não num caldeirão, esteja nos milhares de milhões de dólares distribuídos pelo druida Biden, que por acaso nem esteve no evento, privilegiando outro, em Los Angeles, de angariação de fundos para a sua campanha, vejam só a coincidência. Com sucesso, de resto. Terá arrecadado 28 milhões de dólares, apreciável maquia numa corrida eleitoral em que o dinheiro é quem mais ordena. Mas adiante. Neste universo paralelo, provavelmente a chefia da aldeia está a cargo de uma mulher, no caso seria a senhora Von der Leyen, que anda com medo de que o céu lhe caia na cabeça, ou seja, de não conseguir abichar um novo mandato.

Na peculiar «cimeira da paz», que deixou de fora uma das partes envolvidas – a Rússia – e por causa disso afastou a maioria dos países de África, Ásia e América Latina, isto é, a maioria da humanidade, nessa «cimeira», repete-se, a civilização ocidental ficou mais uma vez a falar para o umbigo. Quanto ao desejo de paz, se existe, andará pelo universo da banda desenhada de Rogeiro.

Longe das realidades virtuais realizou-se em São Petersburgo, de 5 a 8 de Junho, o Fórum Económico Mundial que ali decorre desde 1997. A edição deste ano, centrada na democratização da ordem mundial, eliminação das práticas neocoloniais, das formas de pressão e da chantagem dos sistemas políticos e monetários mundiais, contou com cerca de 20 000 participantes de 139 países, mas por cá as escassas notícias sobre o assunto centraram-se na «rara aparição pública» das filhas de Putin. Esclarecedor.

Efectuado uma semana antes da mal chamada cimeira, o fórum não só evidenciou a falsidade do propalado «isolamento» da Rússia, como pôs em destaque o que os dados do FMI já tinham antecipado: a previsão de crescimento do PIB russo de 3.2% em 2024, «claramente superior ao do Reino Unido, da França, da Alemanha, dos EUA ou do Japão».

Como refere um documento de 2023 publicado pelo economista russo Sergueï Karaganov, «o principal conflito do mundo moderno é a contradição entre, por um lado, a vontade do Ocidente, com os EUA à cabeça, de preservar a sua hegemonia de cinco séculos que lhe permitiu redistribuir as riquezas do mundo em seu favor e impor a sua cultura e as suas políticas ao mundo, e, por outro lado, o desejo dos países não ocidentais de aceder à soberania plena e total, sem estarem constrangidos pelos dogmas, instituições e ordens do Ocidente. Só uma verdadeira soberania garante a liberdade de desenvolvimento e permite uma participação equitativa na economia mundial». Os EUA, que gastam mais de 900 mil milhões de dólares/ano em «defesa», não querem falar de paz. Querem impor a pax americana.

 



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