Genocídio humanitário?

Jorge Cadima

Há umas dé­cadas ven­deram-nos a te­oria das «guerras hu­ma­ni­tá­rias», as­so­ci­adas à «res­pon­sa­bi­li­dade de pro­teger» (que até tinha um acró­nimo ‘pós-mo­derno’ em in­glês, R2P). A te­oria era que, quando con­fron­tados com grandes crimes contra a Hu­ma­ni­dade, a so­be­rania dos países e o di­reito in­ter­na­ci­onal ti­nham de ser postos na pra­te­leira. Eram ‘ne­ces­sá­rias’ in­ter­ven­ções mi­li­tares ‘para pro­teger as po­pu­la­ções’.

Já era claro que tudo isto não pas­sava duma pa­tranha. Na prá­tica, sempre que as po­tên­cias im­pe­ri­a­listas que­riam in­tervir para ‘dis­ci­pli­nar’ algum país ou povo que re­cu­sasse sub­meter-se aos di­tames im­pe­riais, lan­çavam grandes cam­pa­nhas me­diá­ticas acu­sando-os das pi­ores atro­ci­dades. Os ‘novos Hi­tlers’ pu­lu­lavam por toda a parte e as gri­ta­rias pe­dindo bombas, in­va­sões e guerras também. Foi assim que ‘jus­ti­fi­ca­ram’ as guerras da NATO, da Ju­gos­lávia à Líbia. Foi assim que ba­na­li­zaram a ideia de que EUA/​UE/​NATO ti­nham o ‘di­reito’ de in­vadir e con­quistar a seu bel-prazer. Foi assim que in­ven­taram tri­bu­nais es­pe­ciais de ven­ce­dores, como o TPI. De­pois des­co­bria-se que os pre­textos eram mo­nu­men­tais men­tiras.

Mas se até aqui era pre­ciso algum es­forço para des­co­brir a ver­dade por entre as men­tiras da co­mu­ni­cação so­cial, o horror a que as­sis­timos na Faixa de Gaza re­bentou com esta gi­gan­tesca fal­ca­trua. O cas­telo de men­tiras de­sabou. Um mês e meio de bom­bar­de­a­mentos is­ra­e­litas ar­ra­saram bairros in­teiros, cau­saram muitos mi­lhares de mortos, dos quais mais de 40% cri­anças. Is­rael atacou hos­pi­tais, es­colas, am­bu­lân­cias, co­lunas de re­fu­gi­ados, cen­tros de abrigo. Matou em seis se­manas mais fun­ci­o­ná­rios das agên­cias hu­ma­ni­tá­rias da ONU do que em qual­quer outra guerra. Uma po­pu­lação de 2,3 mi­lhões de ha­bi­tantes, que vive há 17 anos sob cerco im­posto por Is­rael (com a co­ni­vência dos EUA e UE), foi pri­vada de elec­tri­ci­dade, água, me­di­ca­mentos, co­mida. E o que dizem e fazem os ‘hu­ma­ni­tá­rios’? De ban­dei­rinha em riste, dizem-nos que Is­rael ‘de­fende os nossos va­lo­res’ e tem o ‘di­reito a de­fender-se’. Afinal, cas­tigos co­lec­tivos são ‘hu­ma­ni­tá­rios’. Até um ge­no­cídio pode ser ‘hu­ma­ni­tá­rio’ e ‘de­fen­sivo’.

Para ‘pro­te­ger’ a po­pu­lação de Gaza não era pre­ciso uma in­ter­venção mi­litar. Bas­tava que EUA e seus sa­té­lites man­dassem Is­rael parar; dei­xassem de en­viar armas para Is­rael e forças mi­li­tares imensas para a re­gião; ame­a­çassem impor a Is­rael apenas 1% das san­ções que já im­pu­seram a tantos ou­tros países por esse mundo fora; vo­tassem a favor do cessar-fogo de cada vez que o as­sunto foi le­vado ao Con­selho de Se­gu­rança da ONU. Mas não. A pró­pria pa­lavra cessar-fogo tornou-se tabu. Na UE, a ‘Res­pon­sa­bi­li­dade de Pro­te­ger’ re­velou ser apenas uma ‘Res­pon­sa­bi­li­dade de Obe­de­cer’ (R2O?) aos di­tames im­pe­riais de Washington. Ou pior: uma opção. Afinal, a men­ta­li­dade co­lo­ni­a­lista não morreu. Tinha apenas sido posta na de­fen­siva pela luta li­ber­ta­dora dos povos. Na UE, ‘va­lo­res’ são só os que se contam em euros.

Hoje é in­con­tes­tável. Da ‘guerra hu­ma­ni­tá­ria’ só sobra a guerra. Que nunca foi hu­ma­ni­tária. Apenas de con­quista e de ra­pina. O que era pre­ciso era o pre­texto para des­truir a so­be­rania e voltar a ‘dis­ci­pli­nar’ os povos. Mas o povo da Pa­les­tina mostra o ca­minho: a re­sis­tência.





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