Em vez de água

Anabela Fino

«Há falta de caixeiros viajantes, todos querem fazer jornalismo.» O irónico aforismo é do judeu austríaco Karl Kraus, escritor e jornalista do séc. XX conhecido por fustigar a hipocrisia social da sua época, de que é exemplo o seu manifesto contra o sionismo ou a incansável denúncia do jornalismo e dos jornais nas suas relações com o poder. Autor de «Os Últimos Dias da Humanidade», escrito durante a I Guerra Mundial, Kraus ganha por estes dias particular actualidade. Tal como então denunciou este jornalista que não poupava o jornalismo enfeudado, assiste-se hoje nos media corporativos ao crime de tentar esconder o sofrimento humano, de apresentar as vítimas como algozes, de tentar fazer-nos cúmplices do extermínio do povo palestiniano.

Faz-se manchetes com massacres de bebés que não existiram,remete-se os desmentidos para notas de rodapé e omite-se que Israel, enquanto transforma Gaza numa imensa vala comum, tem o seu ministro da energia, Israel Katz, a negoceiar a exploração de gás fóssil palestiniano com sociedades como a italiana Eni ou a britânica BP. O mesmo ministro que disse: «Ajuda humanitária a Gaza? Nenhum interruptor eléctrico será ligado, nenhuma torneira de água será aberta e nenhum camião de combustível entrará em Gaza até ao regresso dos reféns israelitas.»

Mais de 11000 mortos depois, dos quais pelo menos 35 jornalistas, a mordaça rompeu-se. 600 repórteres, editores, fotógrafos, produtores norte-americanos e 300 outros profissionais de media de todo o mundo subscreveram uma carta aberta a exortar ao «fim da violência contra jornalistas em Gaza» e a apelar aos «chefes das redacções ocidentais para que sejam claros na cobertura das repetidas atrocidades cometidas por Israel contra os palestinianos».

Divulgada a 9 de Novembro, a carta responsabiliza os media ocidentais pela «retórica desumanizadora que serviu para justificar a limpeza étnica dos palestinianos» e sublinha a «duplicidade, imprecisões e falácias» com que se procura minar as «perspectivas palestinianas, árabes e muçulmanas, descartando-as como pouco confiáveis e invocando uma linguagem inflamatória que reforça os sentimentos islamofóbicos e racistas».

O documento apela aos jornalistas para que contem toda a verdade, sem medo de «utilizar termos precisos e bem definidos pelas organizações internacionais de direitos humanos», incluindo apartheid, «limpeza étnica» e «genocídio». Trata-se de reconhecer que «distorcer as nossas palavras para esconder provas de crimes de guerra ou da opressão dos palestinianos por parte de Israel é uma negligência jornalística e uma renúncia da clareza moral».

Voltando a Kraus e ao jornalismo, «dá a impressão de que um aprendiz de feiticeiro se aproveitou da ausência do mestre. Mas em vez de água, há sangue».




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