Naufrágio

Anabela Fino

A perda de vidas humanas é sempre de lamentar e não se questiona que em situações de risco cabe à sociedade mobilizar os recursos necessários para resgatar as vidas em perigo. Algo tão elementar tornou-se no entanto nos últimos dias numa caricatura macabra do mundo civilizado que é suposto ser o nosso.

A trágica odisseia de cinco multimilionários em expedição aos destroços submersos do Titanic mereceu uma cobertura mediática até à saturação, enquanto nas televisões passava em nota de rodapé essa outra tragédia de (mais) um fatal naufrágio de centenas que atravessaram o Mediterrâneo em busca de abrigo.

Dando de barato que se ache o máximo fazer excursões aos destroços do transatlântico de luxo que há mais de um século naufragou após colidir com um iceberg, provocando mais de 1500 mortos, assim transformados numa espécie de Disneylândia para os podres de ricos, fica por explicar a duplicidade de critérios no tratamento dado às mortes sistemáticas provocadas, não por leviandades ou espírito de aventura, mas pela política da Europa Fortaleza seguida pela União Europeia e pela acção do seu braço armado anti migrantes, Frontex, a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira.

Em meados de Junho, pelo menos 600 pessoas morreram em Pylos, na Grécia, e o relato de sobreviventes aponta o dedo à Frontex, que ao invés de ajuda à embarcação em perigo terá tentado rebocá-la para fora das águas gregas. As perguntas incómodas foram abafadas pela tragédia do Titan.

Ao contrário dos mortos no Mediterrâneo, os cinco têm nome: Stockton Rush, Shahzada Dawood e o filho, Suleman, Hamish Harding e Paul-Henri Nargeolet, e cargos sonantes a acompanhar. Dir-se-á que os anónimos são muitos, logo impossíveis de nomear. Mas referir às causas do êxodo não ocupa assim tanto espaço.

Veja-se, por exemplo, o caso da Líbia, importante ponto de partida de migrantes, alvo da acção do Comando dos EUA para África (AFRICOM) por ordem de Barack Obama, em 2011, que passou de Estado próspero a Estado falhado. Os bombardeamentos da NATO causaram entre 50 000 a 100 000 mortos, e mais de dois milhões de deslocados. A destruição da Líbia e o assassinato de Gaddafi desestabilizaram a região, hoje sede de bandos armados e mercado de seres humanos. Nem sequer é segredo.

Nos media corporativos, os jornalistas, que deviam ser os «cães de guarda da democracia», esgotam-se a debater as deficiências do parafuso ou das reservas de oxigénio do Titan, mas não dizem uma palavra sobre os responsáveis pelas políticas que levam à crise migratória. Naufragam nas águas turvas do imperialismo, sem bóia de direitos humanos que lhes valha.

Com os corpos, sob o olhar atento da extrema-direita com que a direita se vem aliando por toda a Europa, dão à costa os destroços da democracia.

 



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