Uma de tantas vidas

Gustavo Carneiro

Nisreen Lubbad nasceu e viveu quase toda a vida num campo de refugiados nos arredores de Belém, na Palestina, um dos muitos criados nos territórios ocupados pelos que fugiam da brutalidade da ocupação sionista – em 1948, em 1967 e em sucessivas vagas de limpeza étnica (a expressão é do historiador israelita Ilan Pappé). Como outros, é um lugar exíguo e sobrelotado, onde falta tudo – da água canalizada às mais elementares perspectivas de futuro. A vida, lá, é como numaprisão de onde se pode ver o céu – resumiu a resistente palestiniana numa sessão de solidariedade realizada há dias, em Lisboa, na qual participou.

Durante anos, Nisreen e todos os seus familiares e vizinhos ali ficaram, confinados, numa espécie de quarentena. Sem poderem sair, sujeitos ao recolher obrigatório e a todo o tipo de arbitrariedades e violências dos militares israelitas, que eram – como continuam a ser – frequentes: «A tua vida pode estar nas mãos de um soldado num checkpoint [posto de controlo militar, fixo ou móvel – são às centenas na Palestina ocupada]. Os soldados entram nos campos de refugiados e muitas vezes matam, ferem e prendem crianças e jovens palestinianos. Com total impunidade.»

Duas das organizações sociais palestinianas que Israel pretende encerrar e cujas sedes assaltou em 2022 (Adammeer, de apoio aos presos, e Defesa para as Crianças – Palestina), mas também a israelita B’tselem, têm vindo a documentar estes crimes: desde o ano 2000, mais de 12 mil menores palestinianos passaram pelas prisões de Israel, na maioria dos casos privados até das visitas dos seus pais; para cima de 2200 morreram às mãos das forças ocupantes. Destes, 17 eram amigos ou antigos colegas dos dois filhos de Nisreen Lubbad (o mais velho tem hoje 23 anos e a mais nova 20).

«Na Palestina ocupada – concluiu, emocionada – nenhuma mãe e nenhum pai pode garantir que cumpre a sua obrigação básica de proteger os seus filhos. É terrível.»

Sendo única, como todas são, a vida desta resistente palestiniana, refugiada em Madrid desde 2018, é semelhante às de milhares dos seus compatriotas. Conta a história de um povo despojado de tudo, menos da sua dignidade, que não desiste da sua existência, da sua identidade, da sua terra e do seu país – independente, soberano e viável, como há muito lhe foi prometido, mas sempre negado.

Entretanto, a Assembleia Geral da ONU assinalou, pela primeira vez, a Naqba palestiniana, por ocasião do seu 75.º aniversário. Para o já citado historiador israelita, Ilan Pappé (que também passou por Portugal recentemente), é um sinal de mudança, só possível porque os EUA «já não são tão importantes como já foram».

Será? O tempo, a luta e a solidariedade o dirão. E determinarão!




Mais artigos de: Opinião

É o SNS que garante o direito à saúde

Muitos milhares de pessoas desfilaram em Lisboa, Porto e Coimbra, integrados na Marcha Nacional pela «Defesa do Direito à Saúde», confirmando assim que existem forças suficientes para salvar o Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas também obrigar o Governo a tomar medidas que reforcem este...

G7: Cimeira de guerra

Vivendo na ilusão de grandezas passadas, sete países insistem em tentar transmitir a ideia de serem as sete maiores economias do mundo. Mas a realidade já não é o que era. Segundo a base de dados do FMI (World Economic Outlook Database), em Abril de 2023, em PIB Paridade de Poder de Compra, os sete países estão apenas na...

Transição digital e realidade

Os serviços de telefone, Internet e televisão transformaram-se numa necessidade básica para as populações. Do seu acesso dependem não apenas aspectos relacionados com comunicações e entretenimento, mas cada vez mais importantes dimensões da vida pessoal, escolar e profissional. Uma alteração que requereu, e está a...

A cidade de Artyom

A Cidade do Donbass onde se têm centrado as atenções nos últimos meses, Artemovsk, recebeu o seu nome em 1924, como forma de homenagear o camarada Artyom (ou Artem, em ucraniano), dirigente bolchevique do Donbass, que depois de uma vida de luta pela emancipação dos trabalhadores morreria em 1921 num acidente. Também em...

Os de baixo e os de cima

No primeiro trimestre do ano, os ganhos dos bancos em Portugal, comparados com os registados no período homólogo do ano passado, foram de fazer crescer água na boca: Santander, mais 38,1%; Novo Banco, mais 84,5%; Montepio, mais 70,4%; BPI, mais 75%; BCP, mais 90%; CGD, mais de 200%. Há uma década que os bancos não...