Ridículo, críticas e os sabores do gelado
As últimas semanas foram pródigas num hábito do complexo mediático nacional: a transformação da vida política num cruzamento entre reality show e telenovela de baixo custo. O pináculo dos últimos dias, no que ao ridículo diz respeito, foi assistir à utilização dos sabores de gelado predilectos do Presidente da República como recurso para o comentário político.
A piada far-se-ia por si própria, não fosse o que reflecte de degradação do comentário e do jornalismo. Mas sobre isso já muito se disse e escreveu, incluindo alguma salutar crítica e auto-crítica oriunda da própria comunicação social – ainda que não seja motivo de altas esperanças numa alteração significativa nos critérios editoriais, a olhar para a experiência recente.
Talvez seja mais interessante para reflexão uma outra linha crítica do que se passou no comentário e no jornalismo político nas últimas semanas que, apesar de ter surgido com mais força a partir dos mais acérrimos defensores do actual Governo do PS, foi sintetizada por Pacheco Pereira no seu último artigo no Público: a comunicação social foi parcial na cobertura dos vários episódios que culminaram na demissão-que-não-chegou-a-ser do ministro Galamba.
O diagnóstico não está longe da realidade, já que, efectivamente, as intervenções se foram sucedendo, quase todas, de tal forma que parecia haver um clamor nacional pela dissolução da Assembleia da República. Têm razão os que apontam para o artificialismo desta construção mediática, quando no país real o que mais preocupa é o salário e a pensão que chega para cada vez menos, ou a prestação da casa e a conta do supermercado que continua a galopar. Como têm razão os que censuram a cada vez maior confusão entre informação e opinião, e entre jornalistas e comentadores – este hábito de cruzamento, em que se torna difícil perceber se a pessoa que vemos nos ecrãs está na qualidade de jornalista ou comentador, ou se está a dar notícia ou a sua opinião, viola uma das regras elementares da comunicação social.
Alguma razão, efectivamente, assiste-os. Mas os seus lamentos só aprofundam a sensação de que o espaço mediático se assemelha cada vez mais a um circo, entre o trágico e o cómico. Quando alguém como Pacheco Pereira, que há décadas é presença regular e cativa na televisão, na rádio e na imprensa, se vem queixar do enviesamento da comunicação social neste episódio não pode deixar de vir à memória o amplo espaço que lhe foi dado para as mais variadas diatribes anticomunistas no espaço mediático, de que é um claro exemplo recente a ajuda que deu à mistificação e falsificação da posição do PCP sobre a guerra na Ucrânia. Como se pode dizer, quando figuras do PS se queixam de que a primeira liga do comentário político está reservada a dois ex-líderes de PSD e CDS (Marques Mendes e Portas). Sendo verdade, não o é menos que já vamos em décadas em que o espaço de comentário política em televisão é dominado por PS, PSD, CDS e BE.