Virado do avesso
A habitação está na ordem do dia. Desde logo porque constitui um inegável e imenso problema. Ao que se adiciona a centralidade mediática que ganhou com a sucessão de anúncios e promessas que, à boleia do PRR, da criação de um Ministério ou de um recente pacote de medidas, fizeram do tema «desígnio nacional». Donde seria expectável que as próximas linhas se dedicassem a descodificar o que o Governo apresentou. Assim não será.
Desde logo porque entre o que foi dito, escrito e apresentado tem uma margem tal de imprecisões e versões contraditórias que só por ímpetos de adivinhação se pode ir além da identificação geral das opções que as enformam, esperando que o dar à luz do dia na anunciada consulta pública ajude a clarear conteúdos. O que aqui se quer mesmo evidenciar é de outra natureza e alcance. Não pelo ineditismo, mas pelo que revela de comprovada dominação ideológica. Dúvidas subsistissem, mesmo sabendo que por aí subsistam em abundância, sobre o poder dos centros do grande capital para, a partir da opinião editada e publicada, impor uma poderosa campanha de desinformação e mistificação, e ficariam dissipadas.
O coro que em uníssono papagueou um guião capaz de transformar um pacote de medidas que, para lá de uma outra medida pontual, tem como destinatário privilegiado os interesses da banca e dos fundos imobiliários, num tenebroso programa «chavista», «socialista» ou «esquerdista», deve ser retido. Não pela novidade em si, que da guerra à epidemia já se fez prova bastante, mas pelo que testemunha dessa máquina de condicionamento capaz de colocar em minutos a horda de comentadores, analistas e editorialistas a uivar contra uma suposta violação do sacramental «direito à propriedade», iludindo o que as medidas comportam em matéria de benefícios e privilégios fiscais dados aos grupos económicos, à banca e aos especuladores imobiliários.
Virado assim do avesso, quer o que os conteúdos predominantemente revelam, quer a natureza e objectivos de classe que o governo exercitou, aí está em andamento essa operação para que a resultante final se traduza numa mais enxuta versão no interesse do grande capital e no adiar do direito constitucional à habitação.