Antes fosse...

Gustavo Carneiro

O anúncio das propostas do Governo para a habitação deu aos partidos mais à direita um pretexto para recolocarem em cena uma das suas actuações favoritas (embora, reconheça-se, já um pouco gasta, de tão vista). O guião é simples: caricatura-se uma dada medida, apelidando-a de radical, mesmo que – e é o caso – nada nela o justifique; faz-se a defesa intransigente da liberdade e da iniciativa privada, como se alguma vez tivessem sido ameaçadas; agita-se o papão do comunismo e, inevitavelmente, recorda-se – com voz grossa e pose de cruzado – que Portugal não é a Venezuela

O êxito desta encenação é garantido e os proveitos repartidos: ganham os seus intérpretes, que sempre têm alguma audiência, mesmo com tão pobre enredo e tão sofridas actuações, mas ganha também o visado, que de um dia para o outro renova em certa medida os pergaminhos de esquerda que tanto apregoa. E se dá tanto jeito, pensarão uns e outros, porque não insistir na cena, uma e outra vez?

Mas deixemos o palco político-mediático (talvez mediático-político seja mais apropriado) e passemos à vida real, concreta. Nela, há mais de um milhão de pessoas com crédito à habitação, muitas delas sem saber como hão-de fazer face à brutal subida das prestações bancárias; há milhares de famílias expulsas para periferias cada vez mais distantes por não conseguirem pagar o que lhes é pedido para continuarem a viver nas suas terras, junto dos seus; há filhos adiados (ou que nunca chegam a nascer) porque os seus pais não conseguiram encontrar uma habitação digna e a custos comportáveis para nela iniciarem uma nova família; há 1300 despejos aprovados a aguardar execução e mais de 720 mil casas vazias; e há, também, bancos e fundos imobiliários a acumular lucros obscenos (e crescentes) à custa de tudo isto…

Ora, nesta vida real, alheia a encenações para eleitor ver, o mínimo que se pode dizer é que as medidas anunciadas não só não são revolucionárias como terão o efeito de deixar quase tudo na mesma. É que nesta concepção da habitação como mercadoria, sujeita às leis do mercado, é bem pouco o que separa o PS dos partidos à sua direita.

E já que se falou da Venezuela, ela não é grande exemplo nesta matéria. Quando Hugo Chávez venceu pela primeira vez as eleições, em 1998, decidido a pôr fim a décadas do mais desbragado neoliberalismo, 87% da população acotovelava-se nas periferias das grandes cidades, sobretudo nas infindáveis favelas erguidas nos morros em redor de Caracas. Mas em 2019 a ONU colocava o país nos primeiros lugares em termos de garantia do direito à habitação e no final de 2022, apesar da pandemia e do apertado bloqueio norte-americano, o governo bolivariano tinha já construído e entregue à população 4,4 milhões de casas.




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