Se perguntarem

Anabela Fino

«(...) E, se nos perguntarem o que fazemos, podemos responder: «Nós lembramo-nos». É assim que, lentamente, acabaremos por ganhar a partida. E, um dia, lembrar-nos-emos tão bem que construiremos a maior pá mecânica da história, cavaremos o maior túmulo de todos os tempos e enterraremos a guerra.» As palavras de Granger, o homem que memorizou a República, de Platão, em Fahrenheit 451, o inquietante livro de ficção científica que em meados do século passado denunciou o perigo mortal que paira sobre a civilização ocidental, são um alento de esperança e um estímulo à resistência quando tudo parece afundar-se à nossa volta.

No romance, a morte da cultura culmina na destruição das mentes, primeiro, e logo depois dos corpos, «até ao apocalipse de uma guerra insensata e incompreensível que apaga todas as acções humanas», como a propósito escreveu Mário Henrique Leiria. Para resistir, é preciso não esquecer.

Lembremo-nos então.

A UE, apêndice acéfalo do imperialismo norte-americano, ao invés de procurar soluções políticas susceptíveis de construir a paz e resolver a crise energética, envereda pelo caminho do abismo traçado pelos EUA. A explicação é recorrente: direitos humanos, valores ocidentais, democracia.

Lembremos então que os EUA têm a maior taxa de encarceramento criminal do mundo, com 2,2 milhões de pessoas presas e outros 4,5 milhões em liberdade condicional (dados de 2017), sendo que a taxa de homens negros presos é quase seis vezes superior à dos homens brancos, disparidade que se agrava ainda mais entre os jovens;

Que no «país da liberdade» permanece em vigor a cláusula da 13.ª Emenda que em 1865 aboliu a escravatura e o trabalho escravo, «excepto como punição por crime», o que dá muito jeito ao sistema prisional, essencialmente privado, que aí tem uma reserva de mão de obra forçada (no penalizar é que está o ganho);

Que a democrática pena de morte está em vigor em 29 estados, para já não falar das leis que retiram o direito de voto aos indivíduos condenados criminalmente; das crianças processadas em tribunais criminais para adultos; da prisão perpétua imposta a cerca de 1300 pessoas por crimes cometidos quando ainda eram menores de 18 anos; de em 2019 o casamento infantil (antes dos 18 anos) permanecer legal de alguma forma em 48 estados; dos cerca de 40 milhões de pessoas que vivem na pobreza; do aumento dos ataques supremacistas brancos na última década, em especial desde 2016; de continuarem em Guantánamo 31 homens presos há mais de uma década, sem acusação e sem direito a um julgamento justo; das guerras em várias partes do mundo...

Não podemos esquecer. Nós lembramo-nos.




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