Um mar que sabe a lago

António Santos

Como interpretar as buscas do FBI à residência de Trump em Mar-a-Lago? Um golpe judicial urdido por antidemocratas democratas para impedir o magnata de se recandidatar em 2024, como acusam os republicanos? Ou, como ripostam os democratas, o cumprimento de um mandado federal contra um cidadão que roubou documentos tão secretos como perigosos que não lhe pertenciam? Trata-se de um caso, já raro em tempos tão polarizados, em que o oito não exclui o oitenta, nem o sim impede as sopas nem o ir se incompatibiliza com o rachar: sendo o partido único dos EUA um bicho bicéfalo, é natural que tenha duas perspectivas distintas da mesma coisa. Não tem é de ser a nossa.

Não sobram dúvidas sobre a natureza política das buscas de Mar-a-Lago: elas acontecem a menos de 10 semanas de importantes eleições intercalares que, auguram as sondagens, podem devolver o controlo da câmara baixa do Congresso a um Partido Republicano submetido a Trump. Ao apertar o cerco judicial contra o 45.º presidente e os seus correligionários mais leais, como Rudy Giuliani e Lindsey Graham, o Partido Democrata pretende isolar Trump do resto do Partido Republicano, tornando a sua candidatura política ou judicialmente inviável, abrindo espaço para os seus adversários internos e empurrando para a ruptura a ala mais ultramontana do partido.

Não se trata de duvidar de que Trump, prolífico e polivalente criminoso de toda a vida, possa ter violado a lei roubando documentos confidenciais, mas seria igualmente ingénuo acreditar que só por coincidência é o juiz que assinou o mandado uma antiga nomeação de Obama.

Menos ingénua é esta pergunta: o que tem em comum Donald Trump com o candidato socialista às eleições presidenciais de 1920, Eugene V. Debs? A lei que justificou as buscas à casa de um também serviu para prender o outro. A Lei da Espionagem de 1917 foi a justificação para executar, em 1953, os comunistas Ethel e Julius Rosenberg, para silenciar todos os que, como Chelsea Manning e Edward Snowden, expuseram os crimes do império e, mais recentemente, para extraditar Julian Assange.

A Lei da Espionagem de 1917 é a válvula de escape judicial das operações globais do imperialismo estado-unidense. Foi agora accionada, não porque Trump queira agora começar a questioná-las, mas porque se preparava para usar os segredos do imperialismo como quem põe uma bala sobre a mesa da chantagem. Os democratas compreenderam que a classe dominante não quereria ver Trump a brincar à política partidária com os segredos sagrados do imperialismo. Entre os documentos com a classificação TS/SCI, a mais confidencial dos EUA, contam-se pastas cujo título é «Presidente de França»; documentos relacionados com «segredos nucleares» bem como escutas e troca de correspondência privada de outros líderes mundiais não identificados.

Se a podridão política tresandasse, a corrupção fosse infecto-contagiosa e a degradação moral fosse radioactiva, os agentes do FBI teriam precisado de fatos de protecção nuclear, biológica e química para tirar aquelas caixas de Mar-a-Lago, pouco mais que gota de água no oceano, ou entre a chuva um pingo que só serve para nos questionarmos quão mau pode ser o lago e quão pior ainda o mar.




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