Entrevistas por medida
O «Grande Entrevista» na RTP3 é paradigmático. Acolheu desde o início do conflito na Ucrânia, entre outros, Durão Barroso, Pacheco Pereira, Niall Ferguson (um historiador escocês vivendo nos EUA que se assume como «membro integralmente pago do gangue neo-imperialista»). Para além da condenação «da Rússia» o entrevistador abre sempre um espaço para exprimirem a sua aversão ao PCP, que não é desperdiçado.
O mais recente entrevistado foi José Gil, um filósofo que acha que os portugueses têm «medo de existir», «medo da liberdade», e que «não sabem exprimir o direito que têm». Descreve a situação na Ucrânia como um unilateral apocalipse: «genocídio, massacre, violações, tortura, cidades tornadas campos de extermínio» pelos russos, claro. Embalado pela analogia com o genocídio nazi, viu também «fornos crematórios transportados em camiões (!)», russos já se vê. É incompreensível que uma tal enormidade tenha passado até agora despercebida à própria propaganda do regime de Zelensky.
Filósofo especializado em medos, alguns terá reservado para si próprio. Medo de procurar averiguar a verdade. Medo de encontrar outras tonalidades num mundo que vê a preto e branco. Um medo que já lhe chegará tarde, o de não perceber patavina do mundo real, tal como é capaz de nada perceber da realidade portuguesa.
O entrevistador mete uma acha: numa sondagem (de uma organização que é uma filial da NATO, coisa que omitiu) «os portugueses» ocupam o terceiro lugar entre os europeus que mais aversão têm «aos russos» (79%), com apenas a Polónia (87%) e a Ucrânia (80%) à frente. Como todas as sondagens, valerá o que vale. Mas que haja em Portugal 21% de cabeças que não embarcam nesse racismo, apesar do quotidiano massacre a que são sujeitos por parte de «personalidades», «filósofos» e «jornalistas» deste calibre, é notável. Como cantava Adriano, «até na noite mais triste há sempre alguém que diz não».