Lucrar com a dor

Gustavo Carneiro

A organização internacional Oxfam publicou há dias um relatório intitulado Lucrando com a Dor, que analisa o aumento das desigualdades durante o período mais agudo da pandemia de COVID-19.

Diz-nos o relatório que, desde 2020, a cada 30 horas surgiu no mundo um novo multimilionário, num total de 573 os que, nesse período, alcançaram esse estatuto: são agora 2668, dos quais apenas 10 possuem mais riqueza do que os 40 por cento mais pobres do mundo – ou seja, 3,1 mil milhões de seres humanos. Não foi só o número de multimilionários a aumentar, mas também as suas fortunas, que cresceram mais nos últimos 24 meses do que em todos os 23 anos anteriores. Entretanto, o estudo da Oxfam estima que, só em 2022, mais 263 milhões de pessoas passem à situação de pobreza extrema, sensivelmente cerca de um milhão a cada 33 horas.

Especialmente beneficiados têm sido os monopólios dos sectores energético, alimentar e farmacêutico. As fortunas dos multimilionários ligados à alimentação e à energia aumentaram 453 mil milhões de dólares nos últimos dois anos, o que equivale a mil milhões a cada dois dias. Cinco das maiores empresas do sector energético (BP, Shell, Total Energies, Exxon e Chevron) lucram qualquer coisa como 2600 dólares por segundo e dos novos multimilionários 62 provêm do sector alimentar: só a família Cargill, que com outras três empresas controla 70 por cento do mercado agrícola mundial e registou em 2021 o maior lucro da sua história, passou a ter 12 multimilionários, mais quatro do que tinha em 2020. Ao mesmo tempo, são cada vez mais os que saltam refeições, não conseguem aquecer as casas e falham o pagamento das suas contas. Na África Oriental, uma pessoa morre de fome a cada minuto que passa.

O relatório revela ainda como a pandemia criou 40 novos multimilionários no sector farmacêutico e como a Moderna e a Pfizer lucram mil dólares por segundo apenas devido ao controlo monopolista das vacinas contra a COVID-19, pese embora o seu desenvolvimento ter sido suportado por avultados fundos públicos. O que é cobrado aos Estados pela aquisição destas vacinas, calcula ainda a Oxfam, é 24 vezes superior ao custo potencial da sua produção. Enquanto isso, nos países de mais baixo rendimento, as taxas de vacinação são ainda reduzidíssimas e muitas as vidas que se perderam e perdem.

Denunciando a impunidade com que os super-ricos (como lhes chama) se apoderam de empresas e recursos, esmagam salários e direitos e beneficiam de regimes fiscais feitos à sua medida, a Oxfam propõe uma maior – e efectiva – taxação das grandes fortunas. Mas nada diz, e não seria expectável que o fizesse, quanto à necessidade da superação revolucionária do capitalismo, cuja natureza exploradora, desumana e predadora tão bem descreve no seu relatório. Essa é a nossa tarefa.




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