Realpolitik

Anabela Fino

Num passado mais ou menos recente, nas feiras que animavam os ócios do povo, era frequente ouvir-se o chamamento «Ó simpático, vai um tirinho?». O incentivo caiu em desuso, mas continua pujante nos EUA, onde a iniciação às armas é bem mais do que um desporto nacional.

O busílis da questão está no facto de pelas terras do Tio Sam – aquela agressiva figura de cartola e dedo espetado a exigir o nosso escalpe (I Want You) – o tiro ao alvo ter tomado conta do quotidiano, numa tenebrosa e mortífera dramatização das idiossincrasias nacionais.

No país onde é preciso ter 21 anos para comprar uma cerveja, mas onde com 18 anos se pode adquirir espingardas automáticas como a que há uma semana massacrou 21 pessoas, incluindo 19 crianças, no Texas, o negócio das armas envergou a roupagem dos «direitos fundamentais», ancorou na Constituição e deu licença para matar. Não é uma figura de estilo: segundo a ONG Gun Violence Archive, desde Janeiro já houve, pelo menos, 212 massacres, com um saldo de 6700 mortos e 14 mil feridos; o FBI anunciou, há uma semana, que os ataques a tiro «aumentaram 96,7% desde 2017»; o Ministério da Justiça dá conta, em relatório recente, que as vendas de armas dispararam com a pandemia, enquanto a produção de armamento quase triplicou nos últimos 20 anos; dados oficiais confirmam que as armas se tornaram a principal causa de morte dos jovens norte-americanos (em 2020, 4368 crianças e adolescentes até aos 19 anos morreram devido a armas de fogo).

Há mais de um ano, aquando de um massacre num supermercado, a indignação do presidente Biden fez manchetes, tal como agora, clamando a necessidade de «agir e já». Pois sim. Na realpolitik, o lobby das armas paga a republicanos e democratas e continua a falar mais alto. Até ao próximo massacre.




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