Mia Couto, visita breve

Correia da Fonseca

Inesperadamente, um dos canais lusos de televisão trouxe-nos notícias de Mia Couto, o escritor moçambicano que é uma das grandes presenças no quadro actual da literatura de expressão portuguesa. A referência teve alguma coisa de surpreendente, até porque não é prática usual da nossa televisão lembrar-se de que a literatura existe, vive e respira; e esta excepção explica-se talvez pela circunstância de Mia ser um escritor estrangeiro, embora não completamente. De qualquer modo, a evidência de que a TV sabe que Mia Couto existe e, mais que isso, escreve livros que obtêm a atenção da televisão, é um facto que tem alguma coisa de reconfortante para quem já se tenha habituado ao facto de a televisão portuguesa, que sabe tanta coisa e tanta coisa nos vem contar, em larga medida se esqueça da sobrevivência da literatura portuguesa. Terá, de longe em longe, momentos em que se recorda dela, mas são eles tão raros (e quase sempre tão fastidiosos) que quase apelam para o nosso esquecimento. Neste contexto surgiu, pois, a notícia que deu conta da existência de Mia Couto e do seu recente livro. Como que fazer prova de que nada, nem os fenómenos menos prováveis, estão irremediavelmente perdidos.

Como denúncia

É preciso, porém, aproveitar esta rara ocorrência para cumprir o dever de sublinhar que a televisão portuguesa, quer quando pública quer quando privada, ignora quase totalmente a existência de livros e dos seus autores, como se a literatura não fosse a sua irmã mais velha e ainda, apesar de todas as circunstâncias adversas, uma irmã robusta. É de facto raro que a televisão nos fale de livros com o vagar e a atenção que eles merecem; ou mesmo sem vagar nem atenção, pois por vezes o mais importante é começar uma prática desejável ficando para mais tarde o tempo e o modo. E, contudo, o dado fundamental é que ler é preciso e que a ausência da leitura como prática regular é um seguro caminho para formas diversas de analfabetismo. Como bem se sabe, a televisão fala-nos muito de futebol, e não se dirá agora que essa sua conversa é excessiva e tendencialmente intoxicante: essa eventual acusação fica para outros vagares. O que é um pouco intrigante é essa aparente relutância da televisão em falar-nos de livros: dir-se-ia que quer fazer-nos esquecer que eles existem. Houve um tempo agora já remoto em que homens de boa cabeça e de desembaraçada fala vinham falar-nos de livros (embora não muito, reconheça-se): que é feito deles, morreram todos? Ou será a televisão que se sente mais confortável antecipando-lhes o óbito? Uma coisa é certa: ainda que em clima adverso ou, pelo menos, pouco favorável, os livros existem e são-nos de uma utilidade insubstituível. É neste quadro que a notícia acerca do livro de Mia Couto surge como excepção. E, por ser óbvia excepção, como denúncia.




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