Sucessivos equívocos
Milhares de militares aguardam há anos a resolução dos seus problemas profissionais
Lusa
As Forças Armadas têm vivido, nos últimos dois meses, um ambiente muito toldado por sucessivos casos, incidentes, infantis justificações e valorizações que soam a falso, porque inconsistentes ao nível das medidas de resposta aos problemas concretos. A imagem vendida para consumo dos portugueses está longe daquele que é o ambiente vivido na Instituição.
Dirão alguns, para fazer prevalecer a sua opinião, que «as coisas funcionam». Mas «as coisas funcionarem» não é sinónimo de ausência de mal-estar, de sentimentos de agastamento e de desconsideração. Outros procuram «tapar o sol com a peneira», salientando a consideração expressa aos militares portugueses nas missões externas, na vacinação, nos incêndios, etc., não percebendo, ou fingindo não perceber, que esses justos encómios só tornam mais exposta a contradição vivida pelos militares e que só uma ínfima parte troca dignidade por louvores e medalhas, até porque só uma ainda mais ínfima parte a isso acede. Nada de novo e muitas histórias poderiam ser contadas.
Os milhares de militares – entre oficiais, sargentos e praças – aguardam promoções para as quais há meses têm vaga e que a ela não acederam até agora e que, com essa prática recorrente, não só têm sido funcionalmente prejudicados, mas também remuneratoriamente, que motivação os anima? Mais uma prática que também terá reflexo no valor do cálculo da sua pensão/reforma. Os militares prejudicados por um sistema de avaliação que desde o início se mostrou incapaz de o ser, com que espírito todos os dias encaram a sua estada nas fileiras? Para mais quando houve alertas de tipo vário, incluindo da Assembleia da República, que foram ignorados?
Como se sentirão os militares por mais de 10 anos de estagnação da tabela remuneratória? E já agora como se sentirão, em particular, os praças do QP com alguns anos de serviço, ao verem os que agora entram, por força da justa e correcta subida do salário mínimo nacional, quase no mesmo nível remuneratório? Como se sentirão os militares ao ouvirem dizer, por um alto responsável governamental, que as dívidas do IASFA estavam saldadas quando isso não corresponde à verdade?
E como se sentirão os militares quando ouvem publicamente justificações criativas para o que aconteceu no Dia do Exército, independentemente de acharem tais actos correctos ou incorrectos? Como se sentirão os que assistem mês após mês à instabilidade quanto ao futuro do Arsenal? Como se sentirão os furriéis deficientes das Forças Armadas ao serem remunerados como cabos de secção? Como se sentirão as dezenas de primeiros-sargentos com 20 anos de posto sem perspectivas de promoção? Como se sentirão cabos que deviam estar graduados em furriéis e não estão e furriéis a quem são incumbidas tarefas de cabo?
Um mar de «equívocos» sem resposta invade a instituição militar, a vida concreta de cada militar. E podem alguns continuar a perorar sobre a guerra das estrelas e das precedências, enquanto os problemas se aprofundam com todas as consequências daí resultantes. Não é isso que os preocupa hoje, como não foi isso que os preocupou no passado e por isso somos chegados onde estamos.
Na altura em que ganhará expressão a comemoração do centenário do nascimento de José Saramago, cita-se do Livro dos Conselhos «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara».