Se calhar
Dias depois de PS, PSD, CDS-PP, Chega e Iniciativa Liberal terem ‘chumbado’ na Assembleia da República o projecto de resolução do PCP que recomendava ao Governo o aumento do Salário Mínimo Nacional para 850 euros, o presidente da CIP, António Saraiva, afirmava em entrevista à Antena 1 e ao Jornal de Negócios que «se calhar», em 2022, «não há condições» para aumentar o SMN para os 705 euros; que não faz sentido manter a meta dos 750 euros até 2023; e que é «contra qualquer aumento irracional» do salário mínimo.
As duas situações são reveladoras de como é actual o princípio «os trabalhadores que paguem a crise», seja sob o manto diáfano da hipocrisia, seja à crua luz da realidade.
Na AR, a rejeição de uma iniciativa sem força de lei ilustra bem como nem no domínio das intenções existe vontade de pôr fim aos salários de miséria, principal causa da pobreza em Portugal: recorde-se que a maioria das pessoas nesta situação trabalha, sendo que a maior parte, 32,9%, tem vínculos laborais sem termo e aufere pelo menos o salário mínimo, enquanto 26,6% têm trabalhos precários.
Quanto ao representante dos patrões, os actuais 665 euros devem parecer-lhe uma fortuna e o aumento de 40 euros proposto pelo Governo uma verdadeira exorbitância.
«Se calhar», para António Saraiva, que em Setembro dizia, numa outra entrevista, que aquilo que a CIP quer é que o «Estado saia da frente», para logo se queixar da ausência de apoios estatais às empresas, nomeadamente no respeitante ao fim das moratórias, o «irracional» é as empresas terem de pagar a quem trabalha.
Mas já não é «irracional» que tantos pobres sejam efectivos nos seus postos de trabalho, muitos há mais de uma década e alguns mesmo há mais de duas décadas. Também não deve ser «irracional» que, segundo dados de 2018, quase metade dos desempregados viva em situação de pobreza. Tão pouco será «irracional» que quase um quinto dos portugueses esteja em situação de pobreza: 17,2%, o equivalente a 1,7 milhões de pessoas, de acordo com os últimos indicadores. E muito menos será «irracional» a persistência dos baixos salários no círculo vicioso da pobreza que faz com que esta seja uma herança que se transmite de geração em geração.
A Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, agora em discussão pública, parece enfermar da «racionalidade» dos que se opõem ao «aumento irracional» do salário mínimo, apostando no aumento de várias prestações sociais como o abono de família ou o rendimento social de inserção e deixando de fora a rubrica fundamental dos salário dignos.
Tendo presente que o RSI chega a 214 075 pessoas que, em média, recebem pouco mais de 119 euros por mês, e que temos quase dois milhões de pobres, se calhar não é assim que lá vamos.