Sem remorsos
Do muito que se disse e escreveu nas últimas semanas sobre o Afeganistão, um pormenor escapou à generalidade dos comentadores, especialistas e articulistas: o papel dos EUA na criação e proliferação de forças obscurantistas e fundamentalistas naquele país da Ásia Central. Os poucos que o referiram trataram-no como episódio longínquo ou justificaram-no com a mentalidade de Guerra Fria e o combate ao que ainda hoje designam de invasão soviética do Afeganistão.
Não houve da parte dos profissionais do comentário quaisquer referências à Revolução Saur, de Abril de 1978, e às medidas implementadas pelo Partido Popular Democrático (a Reforma Agrária, a proibição da usura, o crescente protagonismo das mulheres, a laicização da sociedade), nem se ouviu ou leu nada acerca do retrocesso que representou para o povo afegão o derrube do governo progressista, já na década de 90, e o caos provocado pela guerra que se seguiu.
Mergulhemos no baú e deixemos falar quem sabe, ninguém menos do que o «inventor» dos mujahedines, Zbigniew Brzezinski, conselheiro de Segurança Nacional do presidente Jimmy Carter (1977-1981). Foi ele que numa entrevista em 1998 (www.counterpunch.org/1998/01/15/how-jimmy-carter-and-i-started-the-mujahideen) confirmou um segredo (mal) guardado durante quase 20 anos: «Segundo a história oficial, o apoio da CIA aos mujahedines começou na década de 1980 [ou seja, após a entrada das tropas soviéticas] (…). Na verdade, foi a 3 de Julho de 1979 que o Presidente Carter assinou a primeira directiva visando o apoio secreto aos opositores ao regime (…). Nesse mesmo dia, escrevi-lhe uma mensagem a explicar como, na minha opinião, esse apoio ia induzir uma intervenção militar soviética.»
Clarificada a cronologia, não deixam de ser úteis outras afirmações de Brzezinski, sobretudo acerca dos objectivos. Liberdade? Direitos humanos? Nada disso! Numa outra entrevista, de 1997 (nsarchive2.gwu.edu/coldwar/interviews/episode-17/brzezinski2.html), o conselheiro de Carter tinha já sido claro: a ideia foi, tão somente, «fazer os soviéticos sangrar o máximo possível e durante o maior período de tempo possível.»
Poderia ser apenas de história que aqui se falava não estivessem tão presentes as consequências do passado – e não só no Afeganistão: a receita de Brzezinski foi replicada na Síria e na Ucrânia (era Joe Biden vice-presidente) com o apoio a grupos terroristas e neonazis, também eles louvados publicamente como freedom fighters [combatentes pela liberdade], à semelhança dos mujahedines afegãos.
Quanto às consequências, vejamos o que disse Brzezinski: «Remorsos de quê? Essa operação secreta foi uma excelente ideia.» Para os interesses do imperialismo, claro. E que mais lhe importa?