Sem remorsos

Gustavo Carneiro

Do muito que se disse e escreveu nas últimas semanas sobre o Afeganistão, um pormenor escapou à generalidade dos comentadores, especialistas e articulistas: o papel dos EUA na criação e proliferação de forças obscurantistas e fundamentalistas naquele país da Ásia Central. Os poucos que o referiram trataram-no como episódio longínquo ou justificaram-no com a mentalidade de Guerra Fria e o combate ao que ainda hoje designam de invasão soviética do Afeganistão.

Não houve da parte dos profissionais do comentário quaisquer referências à Revolução Saur, de Abril de 1978, e às medidas implementadas pelo Partido Popular Democrático (a Reforma Agrária, a proibição da usura, o crescente protagonismo das mulheres, a laicização da sociedade), nem se ouviu ou leu nada acerca do retrocesso que representou para o povo afegão o derrube do governo progressista, já na década de 90, e o caos provocado pela guerra que se seguiu.

Mergulhemos no baú e deixemos falar quem sabe, ninguém menos do que o «inventor» dos mujahedines, Zbigniew Brzezinski, conselheiro de Segurança Nacional do presidente Jimmy Carter (1977-1981). Foi ele que numa entrevista em 1998 (www.counterpunch.org/1998/01/15/how-jimmy-carter-and-i-started-the-mujahideen) confirmou um segredo (mal) guardado durante quase 20 anos: «Segundo a história oficial, o apoio da CIA aos mujahedines começou na década de 1980 [ou seja, após a entrada das tropas soviéticas] (…). Na verdade, foi a 3 de Julho de 1979 que o Presidente Carter assinou a primeira directiva visando o apoio secreto aos opositores ao regime (…). Nesse mesmo dia, escrevi-lhe uma mensagem a explicar como, na minha opinião, esse apoio ia induzir uma intervenção militar soviética.»

Clarificada a cronologia, não deixam de ser úteis outras afirmações de Brzezinski, sobretudo acerca dos objectivos. Liberdade? Direitos humanos? Nada disso! Numa outra entrevista, de 1997 (nsarchive2.gwu.edu/coldwar/interviews/episode-17/brzezinski2.html), o conselheiro de Carter tinha já sido claro: a ideia foi, tão somente, «fazer os soviéticos sangrar o máximo possível e durante o maior período de tempo possível.»

Poderia ser apenas de história que aqui se falava não estivessem tão presentes as consequências do passado – e não só no Afeganistão: a receita de Brzezinski foi replicada na Síria e na Ucrânia (era Joe Biden vice-presidente) com o apoio a grupos terroristas e neonazis, também eles louvados publicamente como freedom fighters [combatentes pela liberdade], à semelhança dos mujahedines afegãos.

Quanto às consequências, vejamos o que disse Brzezinski: «Remorsos de quê? Essa operação secreta foi uma excelente ideia.» Para os interesses do imperialismo, claro. E que mais lhe importa?




Mais artigos de: Opinião

Esclarecer! Ouvir! Convencer!

Faltam exactamente 30 dias para a realização das eleições autárquicas. O trabalho já realizado, embora fortemente condicionado pela epidemia, é grande e muito importante para um bom resultado eleitoral no dia 26 de Setembro.

«América de volta»… a casa

É cedo para avaliar todas as repercussões da débacle dos EUA no Afeganistão. Mas estamos perante um acontecimento histórico. Décadas de intervenção terminam numa humilhante retirada. A superioridade militar, tecnológica, económica, financeira e mediática da super-potência imperialista não evitou a derrota. Mesmo gente...

À sombra da epidemia, medra a exploração

Os trabalhadores despedidos pelas empresas do Grupo Madureira’s continuam a exigir os direitos devidos, tendo-se mobilizado, na passada sexta-feira, frente à porta do restaurante Madureira’s Rio Tinto, reclamando os seus créditos. Segundo o Sindicato do sector – Sindicato de Hotelaria do Norte (CGTP-IN) –, tratava-se da...

Limites e injustiças das deduções fiscais no IRS

Com a aproximação da discussão do próximo Orçamento do Estado ressurgem pressões para que se alarguem deduções fiscais no IRS. É o caso do material escolar (há muitos outros) que pesa de forma muito significativa no orçamento de centenas de milhares de famílias. Mas aquilo que aparentemente seria justo, na prática...

«Erros de avaliação»

Um dos temas após a debandada dos EUA/NATO do Afeganistão é que «houve erros de avaliação». Erraram a avaliar a insustentabilidade do governo fantoche instalado e das suas forças armadas, erraram a avaliar a facilidade com que os taliban assumiram o controlo. Não será isto surpreendente? Não basta afinal ligar um...